Mello antepõe o
silêncio à palavra falada, miríades de palavras que já se tornaram vulgarizadas,
de escassa validez, esta talvez restrita a “esconder” aquilo que, de fato,
somos, sem a aptidão, portanto, para anunciar inéditas “auroras”: à espera das “oferendas
dos deuses”, em nova conversão do silêncio à palavra, o poeta poderá, então, oferecer
ao mundo uma flor “humilde e pura”, dando por cumprida, desse modo, a sua
missão.
O poema é, decerto,
essa “flor”, matizada pelas cores do quotidiano, pelos contrastes que minudenciam
a vida e que a diferenciam do fundo opaco do que se nos mostra comezinho,
ordinário, trivial: a “palavra e o homem” são indissociáveis, como “a onda e o
mar”; mas, nesse amálgama irremovível, por que demorar-se em reverberar somente
o que nos chega à vista, deixando de perscrutar tantas belezas suscitadas pela
palavra transvertida por uma poesia de valor?!
J.A.R. – H.C.
Thiago de Mello
(1926-2022)
Silêncio e palavra
I.
A couraça de palavras
protege nosso
silêncio
e esconde aquilo que
somos.
Que importa falarmos
tanto?
Apenas repetiremos.
Ademais, nem são
palavras.
Sons vazios de
mensagem,
são como fria
mortalha
do cotidiano morto.
Como pássaros
cansados,
que não encontram
pouso,
certamente tombarão.
Muitos verões se
sucedem:
o tempo madura os
frutos,
branqueia os nossos
cabelos.
Mas o homem noturno
espera
a aurora da nossa
boca.
II.
Se mãos estranhas
romperem
a veste que nos
esconde,
acharão uma verdade
em forma não
revelável.
(E os homens têm
olhos sujos,
não podem ver
através.)
Mas um dia chegará
em que a oferenda dos
deuses,
dada em forma de
silêncio,
em palavra
transfaremos.
E se porventura a
dermos
ao mundo, tal como a
flor
que se oferta –
humilde e pura –,
teremos então
cumprido
a missão que é dada
ao poeta.
E como são onda e
mar,
seremos palavra e
homem.
Em: “Silêncio e
palavra” (1951)
A música do silêncio
(Pannu: artista
indiano)
Referência:
MELLO, Thiago de.
Silêncio e palavra. In: __________. Poemas preferidos pelo autor e seus
leitores: edição comemorativa dos 75 anos do autor. 3. ed. Rio de Janeiro,
RJ: Bertrand Brasil, 2006. p. 23-24.
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