A poetisa dirige-se a
um interlocutor que, segundo afirma, a despeito de tê-la escutado, ouvido ou visto
o retrato, não a conhece de fato, pois que tais “fragmentos”, “instantes mínimos”,
mal chegam a configurar uma “unidade”, haja vista que “fluímos entre
circunstâncias”, daí porque somos “novos e antigos todos os dias”, ao arbítrio
da forma como a “luz” nos alcança.
Nem “invenções sutis”,
tampouco “teorias misteriosas”, seriam capazes de tornar presente a voz lírica,
porque o contingente é parte inarredável de toda existência humana, uma
autêntica “cascata de pedras”: há muito do que não se apreende nos repentes
fortuitos, nos acidentais, que em cada um de nós sobejam, mediante esse transitivo
jogo de “transparências e de opacidades”!
J.A.R. – H.C.
Cecília Meireles
(1901-1964)
Biografia
Escreverás meu nome
com todas as letras,
com todas as datas,
e não serei eu.
Repetirás o que me
ouviste,
o que leste de mim, e
mostrarás meu retrato,
e nada disso serei
eu.
Dirás coisas
imaginárias,
invenções sutis, engenhosas
teorias,
e continuarei
ausente.
Somos uma difícil
unidade,
de muitos instantes
mínimos,
isso seria eu.
Mil fragmentos somos,
em jogo misterioso,
aproximamo-nos e
afastamo-nos, eternamente.
Como me poderão
encontrar?
Novos e antigos todos
os dias,
transparentes e
opacos, segundo o giro da luz,
nós mesmos nos
procuramos.
E por entre as
circunstâncias fluímos,
leves e livres como a
cascata pelas pedras.
– Que mortal nos
poderia prender?
1957
Em: “Dispersos”
(1918-1964)
Natureza efêmera
(Valorie Cross: pintora
norte-americana)
Referência:
MEIRELES, Cecília. Biografia. In: __________. Poesia completa. 4. ed. Rio de Janeiro, RJ: Nova Aguilar, 1993. p. 1118-1119. (‘Biblioteca Luso-brasileira’: Série Brasileira)
❁
Nenhum comentário:
Postar um comentário