São Paulo, a imensa
conurbação fundada pelos jesuítas – Manuel da Nóbrega à frente –, firma-se ao
olhar do poeta como a “Londres das neblinas finas”, por onde o falante transita
com sentimentos superpostos de alegria e de tristeza, em razão de que é capaz
de capturar, por um lado, a comicidade de um arlequim nos interstícios da peça
laboral em que todos submersos e, por outro, a paisagem urbana que, sem
retoques, consubstancia o dilema “civilização x barbárie”.
E tudo já se disse
sobre a urbe em apreço – e ninguém melhor que um baiano, como Caetano Veloso, para
lhe compendiar os traços antiteticamente airosos e desgraciosos, no mais das
vezes inclementes, numa mirada de segundo grau, em Sampa (1978)! Mas ninguém
para roubar a um paulistano da gema, como Andrade, o franco e ousado lirismo
que a cidade lhe desperta!
J.A.R. – H.C.
Mário de Andrade
(1893-1945)
Paisagem nº 1
Minha Londres das
neblinas finas!
Pleno verão. Os dez
mil milhões de rosas paulistanas.
Há neve de perfumes
no ar.
Faz frio, muito
frio...
E a ironia das pernas
das costureirinhas
parecidas com
bailarinas...
O vento é como uma
navalha
nas mãos dum
espanhol. Arlequinal!...
Há duas horas queimou
Sol.
Daqui a duas horas
queima Sol.
Passa um São Bobo,
cantando, sob os plátanos,
um tralalá... A
guarda-cívica! Prisão! (*)
Necessidade a prisão
para que haja
civilização?
Meu coração sente-se
muito triste...
Enquanto o cinzento
das ruas arrepiadas
dialoga um lamento
com o vento ...
Meu coração sente-se
muito alegre!
Este friozinho
arrebitado
dá uma vontade de
sorrir!
E sigo. E vou
sentindo,
à inquieta alacridade
da invernia,
como um gosto de
lágrimas na boca.
Em: “Pauliceia
Desvairada” (1922)
Arlequim sentado
(Pablo Picasso:
pintor espanhol)
Nota por Naief Sáfady:
(*). Pode-se notar
que o poema estrutura, no jogo vocabular, o próprio jogo dos equívocos, de que
guarda-cívica, por Guarda Civil, é o protótipo. Esse jogo de equívocos
vocabulares, por sua vez, constrói a ideologia do poema: o equívoco. (AZEVEDO
FILHO, 1972, p. 109)
Referência:
ANDRADE, Mário;
Paisagem nº 1. In: AZEVEDO FILHO, Leodegário A. de (Organização e Introdução
Geral). Brasília, DF: Poetas do modernismo: antologia crítica. Vol. I. Ministério
da Educação e Cultura / Instituto Nacional do Livro (MEC/INL), 1972. p. 109. (‘Coleção
de Literatura Brasileira’; n. 9A)
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