Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 31 de março de 2022

Mário de Andrade - Paisagem nº 1

São Paulo, a imensa conurbação fundada pelos jesuítas – Manuel da Nóbrega à frente –, firma-se ao olhar do poeta como a “Londres das neblinas finas”, por onde o falante transita com sentimentos superpostos de alegria e de tristeza, em razão de que é capaz de capturar, por um lado, a comicidade de um arlequim nos interstícios da peça laboral em que todos submersos e, por outro, a paisagem urbana que, sem retoques, consubstancia o dilema “civilização x barbárie”.

 

E tudo já se disse sobre a urbe em apreço – e ninguém melhor que um baiano, como Caetano Veloso, para lhe compendiar os traços antiteticamente airosos e desgraciosos, no mais das vezes inclementes, numa mirada de segundo grau, em Sampa (1978)! Mas ninguém para roubar a um paulistano da gema, como Andrade, o franco e ousado lirismo que a cidade lhe desperta!

 

J.A.R. – H.C.

 

Mário de Andrade

(1893-1945)

 

Paisagem nº 1

 

Minha Londres das neblinas finas!

Pleno verão. Os dez mil milhões de rosas paulistanas.

Há neve de perfumes no ar.

Faz frio, muito frio...

E a ironia das pernas das costureirinhas

parecidas com bailarinas...

O vento é como uma navalha

nas mãos dum espanhol. Arlequinal!...

Há duas horas queimou Sol.

Daqui a duas horas queima Sol.

 

Passa um São Bobo, cantando, sob os plátanos,

um tralalá... A guarda-cívica!  Prisão! (*)

Necessidade a prisão

para que haja civilização?

Meu coração sente-se muito triste...

Enquanto o cinzento das ruas arrepiadas

dialoga um lamento com o vento ...

 

Meu coração sente-se muito alegre!

Este friozinho arrebitado

dá uma vontade de sorrir!

 

E sigo. E vou sentindo,

à inquieta alacridade da invernia,

como um gosto de lágrimas na boca.

 

Em: “Pauliceia Desvairada” (1922)

 

Arlequim sentado

(Pablo Picasso: pintor espanhol)

 

Nota por Naief Sáfady:

 

(*). Pode-se notar que o poema estrutura, no jogo vocabular, o próprio jogo dos equívocos, de que guarda-cívica, por Guarda Civil, é o protótipo. Esse jogo de equívocos vocabulares, por sua vez, constrói a ideologia do poema: o equívoco. (AZEVEDO FILHO, 1972, p. 109)

 

Referência:

 

ANDRADE, Mário; Paisagem nº 1. In: AZEVEDO FILHO, Leodegário A. de (Organização e Introdução Geral). Brasília, DF: Poetas do modernismo: antologia crítica. Vol. I. Ministério da Educação e Cultura / Instituto Nacional do Livro (MEC/INL), 1972. p. 109. (‘Coleção de Literatura Brasileira’; n. 9A)

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