A confrontar tudo
aquilo que expresso mediante a linguagem – e então seria melhor reportar-se à “fala”
humana –, com um outro mais passivo ou quieto, atinente a animais e plantas, encerrado
em sua discrição “adjetivante”, Quintana sonha com poemas compostos por palavras
“sumarentas”, carregadas de um sentido que se lhes pode apreender por mera absorção.
De se ver que a linguagem
e a sua coirmã, a gramática, imbricam-se para formam o lógico e fecundo domínio
por meio do qual se é capaz de decodificar a poesia. Mas um incidente intriga-me
mais que tudo no poema de Quintana: por que a referência aos verbos é omitida,
logo eles que são os principais agentes no vasto processo de (re)criação do mundo?!
Comentário por Fausto
Cunha
(AZEVEDO FILHO, 1972,
p. 135-136)
Eis um poema que,
sendo bem à maneira de certa fase de Quintana, se presta para mais de uma classificação.
Começa de certo modo como um poema didático (tudo indica que o título é uma
alusão ao livro de estudos filológicos de Mário Barreto, gramático muito em
voga nos colégios há trinta ou quarenta anos) e como tal se insere numa linha
que passa também por Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto, entre
outros. Com a referência aos adjetivos, o poema entra num clima de arte poética
– e o tom meio jocoso dos versos anteriores – cede lugar a um tom lírico: esse
lirismo vai acentuar-se e definir-se nos versos finais. Toda a composição
mostra como um poeta como Quintana, que parece visceralmente melancólico e
introspectivo, é capaz – não só de um humour inteiramente desinibido,
fio d’água que refresca perenemente a sua obra – é capaz de uma semiprosa
objetiva, cortante, despojada de concessões românticas e ainda temperadas com
certa mordacidade crítica. O poeta na sua “explicação das cousas”, utiliza uma
linguagem coloquial e até expressões da gíria doméstica: “esticar a canela”.
Veja-se o súbito contraste com um verso belo e “sério”, quase solene: “Os puros
adjetivos isentos de qualquer objeto”.
O poema tem início
com um sintagma remissivo, “E havia...”, bastante frequente na inspiração rememorativa
de um (tão justamente louvado) tradutor de Proust. Notar ainda que, depois de
todos os versos impessoais que explicitam a citação inicial do gramático, o
poeta se apresenta com sua própria arte poética numa anáfora – “Eu sonho...” / “Eu
sonho...” – em que o eu acorda sensorialmente o tu da mulher
amada, através de uma sucessão de metáforas gustativas.
J.A.R. – H.C.
Mário Quintana
(1906-1994)
De Gramática e de
Linguagem
E havia uma gramática
que dizia assim:
“Substantivo
(concreto) é tudo quanto indica
Pessoa, animal ou
cousa: João, sabiá, caneta”.
Eu gosto é das
cousas. As cousas, sim!...
As pessoas
atrapalham. Estão em toda parte. Multiplicam-se em excesso.
As cousas são
quietas. Bastam-se. Não se metem
com ninguém.
Uma pedra. Um armário.
Um ovo. (Ovo, nem sempre,
Ovo pode estar choco:
é inquietante...)
As cousas vivem
metidas com as suas cousas.
E não exigem nada.
Apenas que não as
tirem do lugar onde estão.
E João pode neste
mesmo instante vir bater
à nossa porta.
Para quê? não
importa: João vem!
E há de estar triste
ou alegre, reticente ou falastrão,
Amigo ou adverso...
João só será definitivo
Quando esticar a
canela. Morre, João ...
Mas o bom, mesmo, são
os adjetivos,
Os puros adjetivos
isentos de qualquer objeto.
Verde. Macio. Áspero.
Rente. Escuro. Luminoso.
Sonoro. Lento. Eu
sonho
Com uma linguagem
composta unicamente de adjetivos
Como decerto é a
linguagem das plantas e dos animais.
Ainda mais: eu sonho
com um poema
Cujas palavras
sumarentas escorram
Como a polpa de um fruto
maduro em tua boca,
Um poema que te mate
de amor
Antes mesmo que tu
lhe saibas o misterioso sentido:
Basta provares o seu
gosto...
Em: “Novos Poemas” (1966)
Natureza-morta com ovos
& vasilha de cobre
(Noah Verrier: pintor
norte-americano)
Referência:
QUINTANA, Mário. De
gramática e de linguagem. In: AZEVEDO FILHO, Leodegário A. de (Organização e
Introdução Geral). Brasília, DF: Poetas do modernismo: antologia
crítica. Vol. V. Ministério da Educação e Cultura / Instituto Nacional do Livro
(MEC/INL), 1972. p. 135. (‘Coleção de Literatura Brasileira’; n. 9E)
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