Com dísticos
anafóricos alusivos à Vila Rica e a Ouro Preto – a mesma e assaz preservada cidade
histórica de Minas Gerais, convolada de um nome a outro no ano imediato ao da
independência do país –, transcrevem-se abaixo três das seções do premiado
poemário “Pastoral de Minas” (1981), de autoria do poeta ouro-pretano.
Vila Rica aflora,
borbulha em Ouro Preto, porque as palavras, as ideias, o passado têm poderes! Eis
o motivo de a comoção dos inconfidentes ainda pairar naquele cenário de
arquitetura barroca, a par com a invocação lapidária de Virgílio: “Libertas
quae sera tamen”. E no monumento central do burgo, na Praça Tiradentes, uma
ostensiva epígrafe anamnésica rejeita quaisquer pretensões de olvido: “Aqui, em
poste de ignomínia, esteve exposta a sua cabeça”.
“Canta a tua aldeia e
serás universal”, teria dito Tolstói. Nessa toada, o poeta faz ecoar não apenas
lastros tangíveis da realidade em Minas, senão também o que há de intangível no
ser mineiro, suas representações, sentimentos, pasmos, inspirações.
A doçura melancólica –
algo hierática – das paisagens onduladas, o patrimônio imaterial de uma época, a
fantasia imaginativa, o espaço para a sugestão, a inventividade no arranjo das
palavras, tudo conspira para que a poesia se nos ofereça por meio desse impulso
vital que é dado ao poeta expressar.
J.A.R. – H.C.
Geraldo Reis
(n. 1949)
Ouro Preto/Vila Rica
21
ouro preto raiando de
tarde e outono
vila rica ladeira
cochilo e ressono
ouro preto a cidade e
o lombo da mula
vila rica eriçada nas
eras da bula
ouro preto cantiga de
avante menino
vila rica amanhando
em redobres de sino
ouro preto coitada
com a foice do embromo
vila rica aviltando a
coceira do logro
ouro preto a viagem
na fala do vento
vila rica apitando a
mostragem do tempo
ouro preto saída de
doidas esperas
vila rica sabida de
suas quimeras
ouro preto a carranca
avançando no escuro
vila rica o arremedo
na fala do cura
ouro preto despida a
carcaça do siso
vila rica erradia de
fada e aviso
ouro preto memória e
ressaibo e ventura
vila rica garupa de
coice e agrura
ouro preto aviando
escondidas receitas
vila rica de esguia
escondendo a colheita
Ouro Preto
(Luís Cláudio
Morgilli: pintor paulista)
23
ouro preto no dedo de
dura cantiga
vila rica gerada na
boca da intriga
ouro preto a espera a
farsa o momento
vila rica de pombos
gorados no vento
ouro preto hasteando
a bandeira do mundo
vila rica embalada em
ressono profundo
ouro preto arengando
detrás das janelas
vila rica evitando a
razão da remela
ouro preto balida na
pedra e no luto
vila rica saída do
peito do bruto
ouro preto sabida de
mêmora sorte
vila rica parida na
pausa da morte
ouro preto aleijada
de século-olho
vila rica cabeça de
malho e repolho
ouro preto puída de
tarde e escombro
vila rica levando
essas minas no ombro
Vila Rica
(Thomas Ender: pintor
austríaco)
26
ouro preto a história
na testa do touro
vila rica a memória
da lenda e do ouro
ouro preto o quinhão
do atropelo noturno
vila rica malhando a
ração do futuro
ouro preto escutando
o murmúrio dos nobres
vila rica remida na
pele dos pobres
ouro preto a rasura
na linha da sorte
vila rica a postura
no punho da morte
ouro preto assombrada
de sustos e pausas
vila rica algemada no
azougue das auras
ouro preto o fastio e
o renego dos lanhos
vila rica de outras
manhãs e antanhos
ouro preto morgada de
peso e tortura
vila rica a cabeça e
a triste moldura
ouro preto cozida na
trempe de outrora
vila rica ensinando a
cantiga de agora
Referência:
REIS, Geraldo. Ouro
Preto/Vila Rica, seções de nºs 21, 23 e 26. In: __________. Pastoral de
Minas. Prefácio de Paschoal Mota. Belo Horizonte, MG: Editora Comunicação
& Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, da Prefeitura de
Belo Horizonte, 1981. Seção 21: p. 56-57; seção 23: p. 59; e seção 26: p. 62.
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Só um J. A. Rodrigues para ressuscitar o velho PASTORAL DE MINAS... Agradeço-lhe pela distinção, pelo destaque, pelo prestígio enfim... E agradeço à poesia que colocou no meu caminho esse intérprete que é preciso na leitura e interpretação dos poemas aqui publicados. Registro a emoção e a alegria de ter sido premiado com a publicação no seu blog.Um dia a gente vai se conhecer ainda pessoalmente... Deixo-lhe um forte abraço poético e barroco e, é claro, minha gratidão. Muito obrigado.
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