Andresen especula, sob
a forma de prosa poética, acerca de ser poeta e de sua arte – a da palavra
carregada de sentidos, de plena realidade, obstinada e intransigente porque extraída
à vida –, a configurar um denso caminho que leva até a província em que o
próprio poeta se reconhece – não uma espécie de artesanato desprovido de
quaisquer liames consequenciais que não sejam os da mera “mimesis” do tangível.
Cuide-se que Andresen
não preceitua que a poesia deva se abduzir às coisas concretas, detratando-as, antes,
a elas se deve ceder prevalência em relação aos escaninhos da idealidade, para
assim manifestar os liames de um convívio saudável do poeta com as vozes e as imagens
que lhe chegam a cada momento, tal que se lhe revele a consciência de “estar no
mundo”.
J.A.R. – H.C.
Sophia de M. B.
Andresen
(1919-2004)
Arte Poética II
A poesia não me pede
propriamente uma especialização pois a sua arte é uma arte do ser. Também não é
tempo ou trabalho o que a poesia me pede. Nem me pede uma ciência nem uma
estética nem uma teoria. Pede-me antes a inteireza do meu ser, uma consciência
mais funda do que a minha inteligência, uma fidelidade mais pura do que aquela
que eu posso controlar. Pede-me uma intransigência sem lacuna. Pede-me que
arranque da minha vida que se quebra, gasta, corrompe e dilui uma túnica sem
costura. Pede-me que viva atenta como uma antena, pede-me que viva sempre, que
nunca me esqueça. Pede-me uma obstinação sem tréguas, densa e compacta.
Pois a poesia é a
minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha
participação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens. Por isso o
poema não fala de uma vida ideal mas sim de uma vida concreta: ângulo da janela,
ressonância das ruas, das cidades e dos quartos, sombra dos muros, aparição dos
rostos, silêncio, distância e brilho das estrelas, respiração da noite, perfume
da tília e do orégão.
É esta relação com o
universo que define o poema como poema, como obra de criação poética. Quando há
apenas relação com uma matéria há apenas artesanato.
É o artesanato que
pede especialização, ciência, trabalho, tempo e uma
estética. Todo o poeta, todo o artista é artesão de uma linguagem. Mas o
artesanato das artes poéticas não nasce de si mesmo, isto é, da relação com uma
matéria, como nas artes artesanais. O artesanato das artes poéticas nasce da
própria poesia à qual está consubstancialmente unido. Se um poeta diz
“obscuro”, “amplo”, “barco”, “pedra” é porque estas palavras nomeiam a sua visão
do mundo, a sua ligação com as coisas. Não foram palavras escolhidas
esteticamente pela sua beleza, foram escolhidas pela sua realidade, pela sua
necessidade, pelo seu poder poético de estabelecer uma aliança. E é da
obstinação sem tréguas que a poesia exige que nasce o “obstinado rigor” do
poema. O verso é denso, tenso como um arco, exactamente dito, porque os dias
foram densos, tensos como arcos, exactamente vividos. O equilíbrio das palavras
entre si é o equilíbrio dos momentos entre si.
E no quadro sensível
do poema vejo para onde vou, reconheço o meu caminho, o meu reino, a minha
vida.
O Grande Século
(René Magritte:
artista belga)
Referência:
ANDRESEN, Sophia de
Mello Breyner. Arte poética II. In: __________. Coral e outros poemas.
Seleção e apresentação de Eucanaã Ferraz. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das
Letras, 2018. p. 362-363.
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