Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 26 de fevereiro de 2022

Sophia de Mello Breyner Andresen - Arte Poética II

Andresen especula, sob a forma de prosa poética, acerca de ser poeta e de sua arte – a da palavra carregada de sentidos, de plena realidade, obstinada e intransigente porque extraída à vida –, a configurar um denso caminho que leva até a província em que o próprio poeta se reconhece – não uma espécie de artesanato desprovido de quaisquer liames consequenciais que não sejam os da mera “mimesis” do tangível.

 

Cuide-se que Andresen não preceitua que a poesia deva se abduzir às coisas concretas, detratando-as, antes, a elas se deve ceder prevalência em relação aos escaninhos da idealidade, para assim manifestar os liames de um convívio saudável do poeta com as vozes e as imagens que lhe chegam a cada momento, tal que se lhe revele a consciência de “estar no mundo”.

 

J.A.R. – H.C.

 

Sophia de M. B. Andresen

(1919-2004)

 

Arte Poética II

 

A poesia não me pede propriamente uma especialização pois a sua arte é uma arte do ser. Também não é tempo ou trabalho o que a poesia me pede. Nem me pede uma ciência nem uma estética nem uma teoria. Pede-me antes a inteireza do meu ser, uma consciência mais funda do que a minha inteligência, uma fidelidade mais pura do que aquela que eu posso controlar. Pede-me uma intransigência sem lacuna. Pede-me que arranque da minha vida que se quebra, gasta, corrompe e dilui uma túnica sem costura. Pede-me que viva atenta como uma antena, pede-me que viva sempre, que nunca me esqueça. Pede-me uma obstinação sem tréguas, densa e compacta.

Pois a poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha participação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens. Por isso o poema não fala de uma vida ideal mas sim de uma vida concreta: ângulo da janela, ressonância das ruas, das cidades e dos quartos, sombra dos muros, aparição dos rostos, silêncio, distância e brilho das estrelas, respiração da noite, perfume da tília e do orégão.

É esta relação com o universo que define o poema como poema, como obra de criação poética. Quando há apenas relação com uma matéria há apenas artesanato.

É o artesanato que pede especialização, ciência, trabalho, tempo e uma estética. Todo o poeta, todo o artista é artesão de uma linguagem. Mas o artesanato das artes poéticas não nasce de si mesmo, isto é, da relação com uma matéria, como nas artes artesanais. O artesanato das artes poéticas nasce da própria poesia à qual está consubstancialmente unido. Se um poeta diz “obscuro”, “amplo”, “barco”, “pedra” é porque estas palavras nomeiam a sua visão do mundo, a sua ligação com as coisas. Não foram palavras escolhidas esteticamente pela sua beleza, foram escolhidas pela sua realidade, pela sua necessidade, pelo seu poder poético de estabelecer uma aliança. E é da obstinação sem tréguas que a poesia exige que nasce o “obstinado rigor” do poema. O verso é denso, tenso como um arco, exactamente dito, porque os dias foram densos, tensos como arcos, exactamente vividos. O equilíbrio das palavras entre si é o equilíbrio dos momentos entre si.

E no quadro sensível do poema vejo para onde vou, reconheço o meu caminho, o meu reino, a minha vida.

 

O Grande Século

(René Magritte: artista belga)

 

Referência:

 

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Arte poética II. In: __________. Coral e outros poemas. Seleção e apresentação de Eucanaã Ferraz. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2018. p. 362-363.

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