A elaboração de um poema em correlação com fatos da natureza, começando e terminando com acasos e, em seu intercurso, a denotar conotações anímicas, como se de vontade própria estivesse possuído: ele é a luz que dá contornos vivos à mecânica do mundo, explicando-lhe os seus múltiplos fenômenos ou manifestações, se lhes equivalendo – ainda que por outros meios.
Segundo Júdice, o poema tem o poder de deslindar como são feitas todas as coisas, menos o modo como ele próprio tem origem e expira, vale dizer, em verdade, mais ou menos como o próprio vate que o redige – e, por extensão, toda a humanidade: sem saber exatamente de suas origens no domínio dos éons, sem poder atinar sobre o que lhe ocorre depois do ocaso.
J.A.R. – H.C.
Nuno Júdice
(n. 1949)
Génese
Todo o poema começa de manhã, com o sol. Mesmo
que o poema não esteja à vista (isto é céu de
chuva)
o poema é o que explica tudo, o que dá luz
à terra, ao céu, e com nuvens à mistura – a luz
incomoda
quando é excessiva. Depois, o poema sobe
com as névoas que o dia arrasta; mete-se pelas
copas das
árvores, canta com os pássaros e corre com os
ribeiros
que vem não se sabe de onde e vão para onde
não se sabe. O poema conta como tudo é feito:
menos ele próprio, que começa por um acaso
cinzento,
como esta manhã, e acaba, também por acaso,
com o sol a querer romper.
Em: “A Condescendência do Ser” (1988)
Gênesis
(Osnat Tzadok: pintora israelo-canadense)
Referência:
JÚDICE, Nuno. Génesis. In: __________. Por
dentro do fruto a chuva: antologia poética. Seleção, organização e prefácio
de Vera Lúcia de Oliveira. São Paulo, SP: Escrituras, 2004. p. 42. (Coleção
‘Ponte Velha’)
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