O ente lírico entoa uma
elegia a si mesmo, já no outono da vida, quando então a sua estrutura física
não se encontra em bom estado, tanto mais em razão da bebida que, com
frequência, consome: espera-se por um encarniçado embate de vida ou morte como
o da conquista do oeste norte-americano – “a ser finalmente vencido pelos
peles-vermelhas”.
As menções a James
Bond e à marcha para oeste bem refletem os parâmetros já remotos das películas
assistidas pelo falante, a “persistência” em continuar vivendo com os órgãos em
gradativo colapso, jogado a uma cadeira de rodas, mantidas, de todo modo, a altivez
viril e um decoro a denotar “uma dor de cabeça respeitável, urbana,
incorruptível”.
J.A.R. – H.C.
Jorge Enrique Adoum
(1926-2009)
Elegía a uno mismo
La edad se ha vuelto
una enfermedad venérea
y casi casi cobardía:
años de años
desperdiciados en
durar, mucho tiempo bocabajo
sobre la duda, ya
gastados los dientes
por los besos y
hablar tanto, en los ojos
un asno de frecuente
alcohol. De pronto encuentras
que para el último
episodio, el único
de este western
salvaje y electrónico
en que van a ganar
por fin los pielesrojas,
no basta la feroz
dignidad de tus testículos
si no estás con todos
tus resortes vivos
y no te basta, como
antes o a los otros,
ir recogiendo firmas
con tu profecía ni el cobarde
heroísmo de los
solitarios en viciosas
sesiones de
principios, ni te consuela
decirle al corazón
que al fin y al cabo
te protesta: Ve tú,
músculo voluntario,
vestido de hojarasca,
sería broma lo demás:
dirían que me envía
el enemigo. Y te quedas,
anacrónico e hijo de
vecino,
carajeando a James
Bond en tu sillón de ruedas,
con tu hígado malo y
tu aspirina
conyugal inútil, y tu
decoro
tiene un dolor de
cabeza
respetable, urbano,
incorruptible.
En: “Curriculum
mortis” (1968)
Autorretrato
(Edvard Munch: pintor
norueguês)
Elegia a si mesmo
A idade tornou-se uma
doença venérea
e, por muito pouco,
covardia: anos a fio
desperdiçados em durar,
muito tempo emborcado
sobre a dúvida, já os
dentes desgastados
pelos beijos e por
tanto falar, a se ver nos olhos
o néscio pelo uso
frequente do álcool. De repente
descobres que, para o
último episódio, o único
desse western
selvagem e eletrônico
a ser finalmente
vencido pelos peles-vermelhas,
não basta a feroz
dignidade dos teus testículos
se não estás com todas
as tuas molas vivas; (*)
e não te basta, como
antes ou aos outros,
a recolha de
assinaturas com tua profecia,
nem o covarde
heroísmo dos solitários em viciosas
sessões de princípios;
tampouco te consola
o recurso ao coração
que, ao fim e ao cabo,
vem-te em protesto – Vai-te,
músculo voluntário,
vestido de folhagem; o
resto seria uma piada:
diriam que foi o
inimigo que me enviou. E ficas,
anacrônico filho da mãe,
a insultar James Bond
em tua cadeira de rodas,
com teu fígado enfermo
e tua inútil aspirina
conjugal; e teu
decoro
tem uma dor de cabeça
respeitável, urbana,
incorruptível.
Em: “Curriculum
mortis” (1968)
Nota:
(*). “molas vivas”: imagino
que o poeta se refira às boas condições, à integridade dos membros do corpo,
ou, talvez, a um estado de ânimo inquebrantável.
Referência:
ADOUM, Jorge Enrique.
Elegía a uno mismo. In: __________. Breve antología. Selección y prólogo
de Vladimiro Rivas Iturralde. Edición de Fernando Maqueo. México, DF: UNAM;
Coordinación de Difusión Cultural; Dirección de Literatura, 2009. p. 25-26.
(Material de Lectura; Serie ‘Poesía Moderna’, n. 60)
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