O que o mundo natural
nos apresenta como fatos à admiração todos os dias não deve ser objeto de
censuras morais de nossa parte, se acaso neles constatamos nódoas de violência,
barbaridade ou atrocidade. Afinal, tem ele as suas próprias leis, em especial a
que diz respeito às diferentes cadeias alimentares presentes num dado
ecossistema.
Viver e morrer, nesse
contexto, é um fluir no tempo de uma seta orientada por um só sentido. Cabe-nos
usufruir de cada momento o que dele se nos apresentar como ingrediente para a
felicidade. E aceitemos a “religiosidade” perceptível no instinto de
sobrevivência dos animais à nossa volta: que o martim-pescador seja feliz à sua
maneira!
A natureza é
perfeita, ou seja, perfeitamente funcional e merecedora de admiração, “desde
que não te importes de morrer um pouco”. Não um pouco, com efeito, mas apenas nossa
consciência sabe que o que um martim-pescador conhece é a sua única verdade – a
fome. Confrontados com uma ordem de autônoma em que uma criatura serve de
alimento a outra, nossa consciência renuncia ao julgamento. “Eu não digo que
ele tenha razão. Nem afirmo que esteja errado”. No entanto, nenhuma ação nossa
é tão eficiente quanto a habilidade do martim-pescador submetida ao instinto. (MILOSZ,
1998, p. 20)
J.A.R. – H.C.
Mary Oliver
(1935-2019)
The Kingfisher
The kingfisher rises
out of the black wave
like a blue flower,
in his beak
he carries a silver leaf.
I think this is
the prettiest world –
so long as you don’t mind
a little dying, how
could there be a day
in your whole life
that doesn’t have its
splash of happiness?
There are more fish
than there are leaves
on a thousand trees,
and anyway the kingfisher
wasn’t born to think
about it, or anything else.
When the wave snaps
shut over his blue head, the water
remains water –
hunger is the only story
he has ever heard in
his life that he could believe.
I don’t say he’s
right. Neither
do I say he’s wrong.
Religiously he swallows
the silver leaf
with its broken red
river, and with a rough and easy cry
I couldn’t rouse out
of my thoughtful body
if my life depended
on it, he swings back
over the bright sea
to do the same thing, to do it
(as I long to do something,
anything) perfectly.
Martim-pescador
(David Stribbling: artista
britânico)
O Martim-pescador
O martim-pescador
ergue-se da onda negra
como uma flor azul, carregando
em seu bico uma folha
prateada. Penso que este
seja o mais bonito
dos mundos – contanto que você
não se importe
de morrer um pouco,
como poderia suceder
um dia em toda a sua
vida
sem que ocorra um aspergir
de felicidade?
Há mais peixes do que
folhas
em mil árvores e, de
qualquer forma,
o martim-pescador
não nasceu para
pensar nisso, nem em mais nada.
Quando a onda se
fecha sobre sua cabeça azul, a água
continua a ser água –
a fome é a única história
que ouvira em sua
vida e em que poderia acreditar.
Não digo que tenha
razão. Tampouco
afirmo que esteja equivocado.
Religiosamente ele engole
a folha prateada
com o seu vermelho
rio gretado, e com um grito de tal
aspereza e
naturalidade,
que eu não poderia despertar
de meu corpo pensativo
se minha vida disso dependesse;
ele meneia de volta
sobre o mar brilhante
para repetir o feito, para fazê-lo
(como eu anseio por
fazer algo, qualquer coisa)
à perfeição.
Referência:
OLIVER, Mary. The Kingfisher. In: MILOSZ, Czeslaw (Ed.). A book of luminous things: an international anthology of poetry. 1st. ed. New York, NY: Houghton Mifflin Harcourt, 1998. p. 20.
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