Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Mary Oliver - O Martim-pescador

O que o mundo natural nos apresenta como fatos à admiração todos os dias não deve ser objeto de censuras morais de nossa parte, se acaso neles constatamos nódoas de violência, barbaridade ou atrocidade. Afinal, tem ele as suas próprias leis, em especial a que diz respeito às diferentes cadeias alimentares presentes num dado ecossistema.

 

Viver e morrer, nesse contexto, é um fluir no tempo de uma seta orientada por um só sentido. Cabe-nos usufruir de cada momento o que dele se nos apresentar como ingrediente para a felicidade. E aceitemos a “religiosidade” perceptível no instinto de sobrevivência dos animais à nossa volta: que o martim-pescador seja feliz à sua maneira!

 

A natureza é perfeita, ou seja, perfeitamente funcional e merecedora de admiração, “desde que não te importes de morrer um pouco”. Não um pouco, com efeito, mas apenas nossa consciência sabe que o que um martim-pescador conhece é a sua única verdade – a fome. Confrontados com uma ordem de autônoma em que uma criatura serve de alimento a outra, nossa consciência renuncia ao julgamento. “Eu não digo que ele tenha razão. Nem afirmo que esteja errado”. No entanto, nenhuma ação nossa é tão eficiente quanto a habilidade do martim-pescador submetida ao instinto. (MILOSZ, 1998, p. 20)

 

J.A.R. – H.C.

 

Mary Oliver

(1935-2019)

 

The Kingfisher

 

The kingfisher rises out of the black wave

like a blue flower, in his beak

he carries a silver leaf. I think this is

the prettiest world – so long as you don’t mind

a little dying, how could there be a day

in your whole life

that doesn’t have its splash of happiness?

There are more fish than there are leaves

on a thousand trees, and anyway the kingfisher

wasn’t born to think about it, or anything else.

When the wave snaps shut over his blue head, the water

remains water – hunger is the only story

he has ever heard in his life that he could believe.

I don’t say he’s right. Neither

do I say he’s wrong. Religiously he swallows

the silver leaf

with its broken red river, and with a rough and easy cry

I couldn’t rouse out of my thoughtful body

if my life depended on it, he swings back

over the bright sea to do the same thing, to do it

(as I long to do something, anything) perfectly.

 

Martim-pescador

(David Stribbling: artista britânico)

 

O Martim-pescador

 

O martim-pescador ergue-se da onda negra

como uma flor azul, carregando

em seu bico uma folha prateada. Penso que este

seja o mais bonito dos mundos – contanto que você

não se importe

de morrer um pouco, como poderia suceder

um dia em toda a sua vida

sem que ocorra um aspergir de felicidade?

Há mais peixes do que folhas

em mil árvores e, de qualquer forma,

o martim-pescador

não nasceu para pensar nisso, nem em mais nada.

Quando a onda se fecha sobre sua cabeça azul, a água

continua a ser água – a fome é a única história

que ouvira em sua vida e em que poderia acreditar.

Não digo que tenha razão. Tampouco

afirmo que esteja equivocado. Religiosamente ele engole

a folha prateada

com o seu vermelho rio gretado, e com um grito de tal

aspereza e naturalidade,

que eu não poderia despertar de meu corpo pensativo

se minha vida disso dependesse; ele meneia de volta

sobre o mar brilhante para repetir o feito, para fazê-lo

(como eu anseio por fazer algo, qualquer coisa)

à perfeição.

 

Referência:

 

OLIVER, Mary. The Kingfisher. In: MILOSZ, Czeslaw (Ed.). A book of luminous things: an international anthology of poetry. 1st. ed. New York, NY: Houghton Mifflin Harcourt, 1998. p. 20.

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