Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 6 de fevereiro de 2022

Elizabeth Bishop - Pela Janela: Ouro Preto

O inventário imagístico que Bishop traça de Ouro Preto – Vila Rica, à época dos Inconfidentes – condensa bem a situação de langorosidade em que submerso aquele município, mais ou menos desde fins do século XIX – quando deixou de ser a capital de Minas Gerais, em favor de Belo Horizonte –, expondo-se para sempre aos efeitos corrosivos do tempo (mesmo que, a custo, seu patrimônio artístico e cultural se mantenha, em boa medida, indene).

São cenas ordinárias, singelas, encontradiças em sua quotidianidade, traçadas num discorrer desenlaçado – abeirando a mais genuína prosa –, a partir da janela de uma casa do século XVII que, apaixonada pelo barroco, Bishop comprara e restaurara em Ouro Preto, nomeando-a “Casa Mariana”, em homenagem à também poetisa Marianne Moore (1887-1972), de quem era amiga.

J.A.R. – H.C.

 

Elizabeth Bishop

(1911-1979)

 

Under the window: Ouro Preto

 

for Lili Correia de Araújo

 

The conversations are simple: about food,

or, “When my mother combs my hair, it hurts.”

“Women.” “Women!” Women in red dresses

 

and plastic sandals, carrying their almost

invisible babies – muffled to the eyes

in all the heat – unwrap them, lower them,

 

and give them drinks of water lovingly

from dirty hands, here where there used to be

a fountain, here where all the world still stops.

 

The water used to run out of the mouths

of three green soapstone faces (One face laughed

and one face cried; the middle one just looked.

 

Patched up with plaster, they’re in the museum.)

It runs now from a single iron pipe,

a strong and ropy stream. “Cold.” “Cold as ice,”

 

all have agreed for several centuries,

Donkeys agree, and dogs, and the neat little

bottle-green swallows dare to dip and taste.

 

Here comes that old man with the stick and sack,

meandering again. He stops and fumbles.

He finally gets out his enameled mug.

 

Here comes some laundry tied up in a sheet,

all on its own, three feet above the ground.

Oh, no – a small black boy is underneath.

 

Six donkeys come behind their “godmother”

– the one who wears a fringe of orange wool

with wooly balls above her eyes, and bells.

 

They veer toward the water as a matter

of course, until the drover’s mare trots up,

her whiplash-blinded eye on the off side.

 

A big new truck, Mercedes-Benz, arrives

to overawe them all. The body’s painted

with throbbing rosebuds and the bumper says

 

here i am for whom you have been waiting

The driver and assistant driver wash

their faces, necks, and chests. They wash their feet,

 

their shoes, and put them back again.

Meanwhile, another, older truck grinds up

in a blue cloud of burning oil. It has

 

a syphilitic nose. Nevertheless,

its gallant driver tells the passerby

not much money but it is amusing.

 

“She’s been in labor now two days.” “Transistors

cost much too much.” “For lunch we took advantage

of the poor duck the dog decapitated.”

 

The seven ages of man are talkative

and soiled and thirsty.

Oil has seeped in to

the margins of the ditch of standing water

 

and flashes or looks upwards brokenly,

like bits of mirror – no, more blue than that:

like tatters of the Morpho butterfly.

 

Jarro de Flores e Pombas

Próximo à Janela

com Vista de Casarios em Ouro Preto

(Fernando Clóvis Pereira: pintor maranhense)

 

Pela Janela: Ouro Preto

 

para Lili Correia de Araújo

 

Conversas singelas: fala-se de comida,

ou: “Quando minha mãe me penteia, machuca”,

“Mulheres.” “Mulheres!” Mulheres com vestidos

 

vermelhos, sandálias plásticas, e bebês

quase invisíveis – agasalhados, só os olhos

de fora, no calorão – que elas desembrulham

 

e levam até a água, e dão de beber

com mãos sujas e amorosas, aqui onde antes

havia uma fonte, e onde todos ainda param.

 

A água esguichava das bocas de três caras

de pedra-sabão (Uma ria, uma chorava,

e a do meio só olhava. Hoje, remendadas

 

com gesso, estão guardadas no museu.) A água

agora escorre apenas de um cano de ferro,

um fluxo espesso e forte. “Está fria.” “Gelada”,

 

todos concordam há séculos – os cães e os burros,

e as andorinhas verde-garrafa, elegantes,

ousam um mergulho rápido, só pra provar.

 

Lá vem de novo o velho de bastão e saco,

com seu passo sinuoso. Para, remexe

e finalmente encontra o caneco de esmalte.

 

Lá vem uma trouxa amarrada num lençol,

andando sozinha, um metro acima do chão.

Ah – tem um negrinho escondido embaixo dela.

 

Seis burros se aproximam, atrás da madrinha

– ela é a da franja de lã alaranjada

sobre os olhos, com borlas, e sinos também.

 

Seguem naturalmente rumo à água, até

que a égua do tropeiro se achega, trotando,

o olho direito vazado por um chicote.

 

Um caminhão Mercedes-Benz, enorme e novo,

chega e domina a cena. Na carroceria

botões de rosa brilham, enquanto o para-choque

 

anuncia: chegou quem você esperava.

O motorista e o ajudante lavam o rosto,

o peito, o pescoço. Lavam os pés, os sapatos,

 

depois se recompõem. Enquanto isso, um outro

caminhão, mais velho, chega resfolegando

numa nuvem azul de óleo diesel. Tem

 

nariz de sifilítico. O motorista,

apesar disso, não perde a pose e proclama:

dinheiro não tenho, mas me divirto à beça.

 

“Ela está em trabalho de parto faz dois dias”.

“Um transistor está caro.” “O pato que o cachorro

decapitou, a gente aproveitou no almoço.”

 

Jovens, maduros e velhos querem falar,

e se lavar, e beber.

Nas águas paradas

da valeta um pouco de óleo se espalhou,

 

e brilha, ou pisca, em lampejos partidos, como

cacos de espelho – não, é mais azul que isso:

como os farrapos de uma borboleta Morpho.


Referência:

BISHOP, Elizabeth. Under the window: Ouro Preto / Pela janela: Ouro Preto. Tradução de Paulo Henriques Britto. In: __________. Poemas escolhidos de Elizabeth Bishop. Seleção, tradução e textos introdutórios de Paulo Henriques Britto. Edição bilíngue. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2012. Em inglês: p. 312, 314 e 316; em português: p. 313, 315 e 317.

Um comentário:

  1. Uma sinergia de beleza. Bishop e sua poesia com Ouro Preto e sua gente simples.

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