O inventário imagístico que Bishop traça de Ouro Preto – Vila Rica, à época dos Inconfidentes – condensa bem a situação de langorosidade em que submerso aquele município, mais ou menos desde fins do século XIX – quando deixou de ser a capital de Minas Gerais, em favor de Belo Horizonte –, expondo-se para sempre aos efeitos corrosivos do tempo (mesmo que, a custo, seu patrimônio artístico e cultural se mantenha, em boa medida, indene).
São cenas ordinárias, singelas, encontradiças em sua quotidianidade, traçadas num discorrer desenlaçado – abeirando a mais genuína prosa –, a partir da janela de uma casa do século XVII que, apaixonada pelo barroco, Bishop comprara e restaurara em Ouro Preto, nomeando-a “Casa Mariana”, em homenagem à também poetisa Marianne Moore (1887-1972), de quem era amiga.
J.A.R. – H.C.
Elizabeth Bishop
(1911-1979)
Under the window:
Ouro Preto
for Lili Correia de
Araújo
The conversations are
simple: about food,
or, “When my mother combs
my hair, it hurts.”
“Women.” “Women!”
Women in red dresses
and plastic sandals,
carrying their almost
invisible babies –
muffled to the eyes
in all the heat –
unwrap them, lower them,
and give them drinks
of water lovingly
from dirty hands,
here where there used to be
a fountain, here
where all the world still stops.
The water used to run
out of the mouths
of three green
soapstone faces (One face laughed
and one face cried;
the middle one just looked.
Patched up with
plaster, they’re in the museum.)
It runs now from a
single iron pipe,
a strong and ropy
stream. “Cold.” “Cold as ice,”
all have agreed for
several centuries,
Donkeys agree, and
dogs, and the neat little
bottle-green swallows
dare to dip and taste.
Here comes that old
man with the stick and sack,
meandering again. He
stops and fumbles.
He finally gets out
his enameled mug.
Here comes some
laundry tied up in a sheet,
all on its own, three
feet above the ground.
Oh, no – a small
black boy is underneath.
Six donkeys come
behind their “godmother”
– the one who wears a
fringe of orange wool
with wooly balls
above her eyes, and bells.
They veer toward the
water as a matter
of course, until the
drover’s mare trots up,
her whiplash-blinded
eye on the off side.
A big new truck,
Mercedes-Benz, arrives
to overawe them all.
The body’s painted
with throbbing
rosebuds and the bumper says
here i am for whom you have been waiting
The driver and
assistant driver wash
their faces, necks,
and chests. They wash their feet,
their shoes, and put
them back again.
Meanwhile, another,
older truck grinds up
in a blue cloud of
burning oil. It has
a syphilitic nose.
Nevertheless,
its gallant driver
tells the passerby
not much money but it is amusing.
“She’s been in labor
now two days.” “Transistors
cost much too much.” “For
lunch we took advantage
of the poor duck the
dog decapitated.”
The seven ages of man
are talkative
and soiled and
thirsty.
Oil has seeped in to
the margins of the
ditch of standing water
and flashes or looks upwards
brokenly,
like bits of mirror –
no, more blue than that:
like tatters of the Morpho
butterfly.
Jarro de Flores e
Pombas
Próximo à Janela
com Vista de Casarios
em Ouro Preto
(Fernando Clóvis
Pereira: pintor maranhense)
Pela Janela: Ouro Preto
para Lili Correia de
Araújo
Conversas singelas:
fala-se de comida,
ou: “Quando minha mãe
me penteia, machuca”,
“Mulheres.” “Mulheres!”
Mulheres com vestidos
vermelhos, sandálias
plásticas, e bebês
quase invisíveis –
agasalhados, só os olhos
de fora, no calorão –
que elas desembrulham
e levam até a água, e
dão de beber
com mãos sujas e
amorosas, aqui onde antes
havia uma fonte, e
onde todos ainda param.
A água esguichava das
bocas de três caras
de pedra-sabão (Uma ria,
uma chorava,
e a do meio só
olhava. Hoje, remendadas
com gesso, estão
guardadas no museu.) A água
agora escorre apenas
de um cano de ferro,
um fluxo espesso e
forte. “Está fria.” “Gelada”,
todos concordam há
séculos – os cães e os burros,
e as andorinhas
verde-garrafa, elegantes,
ousam um mergulho
rápido, só pra provar.
Lá vem de novo o
velho de bastão e saco,
com seu passo
sinuoso. Para, remexe
e finalmente encontra
o caneco de esmalte.
Lá vem uma trouxa amarrada
num lençol,
andando sozinha, um
metro acima do chão.
Ah – tem um negrinho
escondido embaixo dela.
Seis burros se
aproximam, atrás da madrinha
– ela é a da franja
de lã alaranjada
sobre os olhos, com
borlas, e sinos também.
Seguem naturalmente
rumo à água, até
que a égua do
tropeiro se achega, trotando,
o olho direito vazado
por um chicote.
Um caminhão
Mercedes-Benz, enorme e novo,
chega e domina a
cena. Na carroceria
botões de rosa
brilham, enquanto o para-choque
anuncia: chegou quem você esperava.
O motorista e o
ajudante lavam o rosto,
o peito, o pescoço.
Lavam os pés, os sapatos,
depois se recompõem.
Enquanto isso, um outro
caminhão, mais velho,
chega resfolegando
numa nuvem azul de
óleo diesel. Tem
nariz de sifilítico.
O motorista,
apesar disso, não
perde a pose e proclama:
dinheiro não tenho, mas me divirto à beça.
“Ela está em trabalho
de parto faz dois dias”.
“Um transistor está
caro.” “O pato que o cachorro
decapitou, a gente
aproveitou no almoço.”
Jovens, maduros e
velhos querem falar,
e se lavar, e beber.
Nas águas paradas
da valeta um pouco de
óleo se espalhou,
e brilha, ou pisca,
em lampejos partidos, como
cacos de espelho – não,
é mais azul que isso:
como os farrapos de uma borboleta Morpho.
Referência:
BISHOP, Elizabeth. Under the window:
Ouro Preto / Pela janela: Ouro Preto. Tradução de Paulo Henriques Britto. In:
__________. Poemas escolhidos de Elizabeth Bishop. Seleção, tradução e
textos introdutórios de Paulo Henriques Britto. Edição bilíngue. 1. ed. São Paulo,
SP: Companhia das Letras, 2012. Em inglês: p. 312, 314 e 316; em português: p. 313,
315 e 317.
Uma sinergia de beleza. Bishop e sua poesia com Ouro Preto e sua gente simples.
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