Deus ebule em seus
mistérios neste enigmático soneto de Bueno, menos por sua incognoscível realidade
ôntica, do que pelo sentido de alteridade que o ser humano lhe atribui, à procura dos princípios causais que regridem lógica e racionalmente até o demiurgo
que empreendeu todo esse portento, não justificável pelo mero acaso de uma fortuita explosão há bilhões de anos.
Afinal, a realidade
do que observamos nunca é superficial; antes, superficial é a mirada que a tudo
contempla desatentamente: os versos bem expressam a inquietude desse vazio que
jaz no espírito, carente das razões da existência, pasmado diante das
maravilhas cósmicas, metafórica e antropomorficamente engendradas pelo poder da
palavra – projetada, enunciada, percebida e compreendida desde os mais
insuspeitados e infinitesimais elementos componentes do pariforme binômio “matéria/energia”.
J.A.R. – H.C.
Apreciação de Manuel
da Costa Pinto
(2006, p. 94-95)
Na contramão de
alguns valores consagrados pela poesia brasileira contemporânea (como concisão
e retórica desinflada), Alexei Bueno faz uma poesia de andamento solene e
conteúdo reflexivo, que explora as variantes históricas das formas lixas.
Disciplina técnica e construção rigorosa são o suporte para uma meditação
também feita de torneios mentais, de jogos de imagens e de raciocínios que
revelam um raro poder especulativo. Assim, num soneto como “O Centro”, o verso
inicial semeia uma série de imagens herméticas, de difícil decifração, em que
tudo aquilo que escapa desse Deus “intrínseco e desperto” se transforma em realidade
de sonho, “onírico acaso” de “nosso oco incerto”. Os versos não resolvem o
paradoxo desse Vácuo que sonha, mas tornam inteligível, pela forma poética,
aquilo que parece insondável aos olhos da razão.
A obra de Alexei
Bueno é atravessada por preocupações metafísicas, como exemplificam os dois
poemas intitulados “Espólio”, publicados em diferentes livros: em ambos, temos
uma contemplação perplexa da finitude humana, da qual só sobreviverão “uns
versos, como agora, uns rijos versos” e essa poesia concebida “entre o horror e
o encanto”.
Seu livro mais recente, Os Resistentes (2001), reúne poemas longos (que não seria possível reproduzir aqui), retomando o ritmo convulsivo, extático, da trilogia composta por A Via Estreita (1995), A Juventude dos Deuses (1996) e Entusiasmo (1997). Todavia, o fato de Alexei Bueno abandonar as formas lapidares fixadas pela tradição não significa uma ruptura com as características dominantes em sua poética. Afinal, as odes contidas nesses livros remetem àquela continuidade – existente na poesia europeia, porém interrompida no caso do modernismo brasileiro – que há entre o romantismo, o simbolismo e as vanguardas. Nesse sentido, os poemas longos de Alexei Bueno são filhos diretos das odes de Fernando Pessoa (que, por sua vez, faz releituras futuristas de uma forma clássica), da mesma maneira que muitos de seus poemas metrificados derivam do decadentismo simbolista, como ocorre aqui no caso de “Os Sonâmbulos” – com seus mortos-vivos vagando ébrios pela noite.
Principais Obras: As
Escadas da Torre (1984), Poemas Gregos (1985), Lucernário (1993),
A Via Estreita (1995), A Juventude dos Deuses (1996), Entusiasmo (1997),
Em Sonho (1999), Os Resistentes (2001) – todos incluídos em Poesia
Reunida (Nova Fronteira, 2003).
Alexei Bueno
(n. 1963)
O Centro
Deus não nos sonha,
mas sua ausência, sim.
Aquilo que não é Ele
está sonhando
Até estas ruas que
vamos pisando
Atrás de algum desconhecido.
E o Vácuo ama o seu
sono. E é tudo assim,
Um onírico acaso, um
curso brando
Com saltos cruéis que
não avisam quando,
E em cada esquina um
túmulo, um festim.
E por trás desse
sonho outros pregressos,
De nós, de outros que
nós, e de outros nós,
E a névoa e a noite,
e as fugas e os ingressos,
E o sonho em tudo, no
antes, no ora e o após.
Enquanto além do Seu
nosso oco incerto
Deus é o que é,
intrínseco e desperto!
Em “Lucernário”
(1993)
O sonho de Jacob
(Bartolomé Esteban
Murillo: pintor espanhol)
Referência:
BUENO, Alexey. O
centro. In: PINTO, Manuel da Costa (Edição, Seleção e Comentários). Antologia
comentada da poesia brasileira do século 21. São Paulo, SP: Publifolha,
2006. p. 91.
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