Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 20 de fevereiro de 2022

Alexei Bueno - O Centro

Deus ebule em seus mistérios neste enigmático soneto de Bueno, menos por sua incognoscível realidade ôntica, do que pelo sentido de alteridade que o ser humano lhe atribui, à procura dos princípios causais que regridem lógica e racionalmente até o demiurgo que empreendeu todo esse portento, não justificável pelo mero acaso de uma fortuita explosão há bilhões de anos.

 

Afinal, a realidade do que observamos nunca é superficial; antes, superficial é a mirada que a tudo contempla desatentamente: os versos bem expressam a inquietude desse vazio que jaz no espírito, carente das razões da existência, pasmado diante das maravilhas cósmicas, metafórica e antropomorficamente engendradas pelo poder da palavra – projetada, enunciada, percebida e compreendida desde os mais insuspeitados e infinitesimais elementos componentes do pariforme binômio “matéria/energia”.

 

J.A.R. – H.C.

 

Apreciação de Manuel da Costa Pinto

(2006, p. 94-95)

 

Na contramão de alguns valores consagrados pela poesia brasileira contemporânea (como concisão e retórica desinflada), Alexei Bueno faz uma poesia de andamento solene e conteúdo reflexivo, que explora as variantes históricas das formas lixas. Disciplina técnica e construção rigorosa são o suporte para uma meditação também feita de torneios mentais, de jogos de imagens e de raciocínios que revelam um raro poder especulativo. Assim, num soneto como “O Centro”, o verso inicial semeia uma série de imagens herméticas, de difícil decifração, em que tudo aquilo que escapa desse Deus “intrínseco e desperto” se transforma em realidade de sonho, “onírico acaso” de “nosso oco incerto”. Os versos não resolvem o paradoxo desse Vácuo que sonha, mas tornam inteligível, pela forma poética, aquilo que parece insondável aos olhos da razão.

 

A obra de Alexei Bueno é atravessada por preocupações metafísicas, como exemplificam os dois poemas intitulados “Espólio”, publicados em diferentes livros: em ambos, temos uma contemplação perplexa da finitude humana, da qual só sobreviverão “uns versos, como agora, uns rijos versos” e essa poesia concebida “entre o horror e o encanto”.

 

Seu livro mais recente, Os Resistentes (2001), reúne poemas longos (que não seria possível reproduzir aqui), retomando o ritmo convulsivo, extático, da trilogia composta por A Via Estreita (1995), A Juventude dos Deuses (1996) e Entusiasmo (1997). Todavia, o fato de Alexei Bueno abandonar as formas lapidares fixadas pela tradição não significa uma ruptura com as características dominantes em sua poética. Afinal, as odes contidas nesses livros remetem àquela continuidade – existente na poesia europeia, porém interrompida no caso do modernismo brasileiro – que há entre o romantismo, o simbolismo e as vanguardas. Nesse sentido, os poemas longos de Alexei Bueno são filhos diretos das odes de Fernando Pessoa (que, por sua vez, faz releituras futuristas de uma forma clássica), da mesma maneira que muitos de seus poemas metrificados derivam do decadentismo simbolista, como ocorre aqui no caso de “Os Sonâmbulos” – com seus mortos-vivos vagando ébrios pela noite.

 

Principais Obras: As Escadas da Torre (1984), Poemas Gregos (1985), Lucernário (1993), A Via Estreita (1995), A Juventude dos Deuses (1996), Entusiasmo (1997), Em Sonho (1999), Os Resistentes (2001) – todos incluídos em Poesia Reunida (Nova Fronteira, 2003).

 

Alexei Bueno

(n. 1963)

 

O Centro

 

Deus não nos sonha, mas sua ausência, sim.

Aquilo que não é Ele está sonhando

Até estas ruas que vamos pisando

Atrás de algum desconhecido.

 

E o Vácuo ama o seu sono. E é tudo assim,

Um onírico acaso, um curso brando

Com saltos cruéis que não avisam quando,

E em cada esquina um túmulo, um festim.

 

E por trás desse sonho outros pregressos,

De nós, de outros que nós, e de outros nós,

E a névoa e a noite, e as fugas e os ingressos,

 

E o sonho em tudo, no antes, no ora e o após.

Enquanto além do Seu nosso oco incerto

Deus é o que é, intrínseco e desperto!

 

Em “Lucernário” (1993)

 

O sonho de Jacob

(Bartolomé Esteban Murillo: pintor espanhol)

 

Referência:

 

BUENO, Alexey. O centro. In: PINTO, Manuel da Costa (Edição, Seleção e Comentários). Antologia comentada da poesia brasileira do século 21. São Paulo, SP: Publifolha, 2006. p. 91.

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