Nenhum motivo para a morte é superior à vontade ou à experiência de viver, pois mesmo em quem se encontra no limiar do óbito pode-se distinguir derradeiros laivos de amor por este mundo e pelas pessoas que lhe são próximas, ou, em sendo poeta o moribundo, certa afeição pelas palavras – das quais há de se despedir uma a uma.
Ao proceder desse modo, torna-se o poeta um “aprendiz de ausências”, pois que dilata a medida de um átimo a uma sucessão de duração indefinida, ao longo da qual vai-se ampliando o rol de adeuses, um mar que se estua na rarefação das palavras, até que, ao fim, venha-se a replicar o dito hamletiano: “O resto é silêncio!”.
J.A.R. – H.C.
Mia Couto
(n. 1955)
Aprendiz de ausências
Morrer
como quem desagua sem mar
e, num derradeiro relance,
olha o mundo
como se ainda o pudesse amar.
Morrer
depois de me despedir
das palavras, uma a uma.
E no final,
descontada a lágrima,
restar uma única certeza:
não há morte
que baste
para se deixar de viver.
Em: “Tradutor de chuvas” (2011)
Silêncio sombrio no subúrbio
(Laura den Hertog: pintora canadense)
Referência:
COUTO, Mia. Aprendiz de ausências. In:
__________. Poemas escolhidos. Seleção do autor. Apresentação de José
Castello. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2016. p. 186.
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