Vai o poeta em sua solidão pelos campos, num pervagar dorido que quase se identifica com a sua sina, mas que acaba por desvelar-se em paz, alegorizada numa conjunção de espinho e flor, de tons revoltos e bonança, demarcando um quê de impassibilidade, como se, diante do verdadeiro sentido da existência, confrontasse suas anteriores convicções e agora as reavaliasse num estado anímico bem mais ponderado.
Evoca o falante os dias dos grandes embates e, diante das “misérias” com que ora se defronta, fixa-se na “solidão bendita” da sombra da amada para, desse modo, aproximar-se de um potencial estado de ventura, afastando as nuvens lúgubres que pairam no firmamento, permutando-as pela “hora florida”, permeada de aromas.
J.A.R. – H.C.
Antonio Machado
(1875-1939)
En la miseria lenta del camino
En la miseria lenta del camino
la hora florida brota,
de tu amor, como espino solitario
del valle humilde a la revuelta umbrosa.
El salmo verdadero
de tenue voz hoy torna
lento a mi corazón y da a mis labios
la palabra quebrada y temblorosa.
Mis viejos mares duermen; se apagaron
sus espumas sonoras
sobre la playa estéril. La borrasca
camina lejos en la nube torva.
Vuelve la paz al cielo,
la brisa tutelar esparce aromas
otra vez sobre el campo, y aparece
en la bendita soledad tu sombra.
No restaurante ‘Père Lathuille’
(Édouard Manet: pintor francês)
Pela miséria lenta do caminho
Pela miséria lenta do caminho
a hora florida brota
de teu amor, qual solitário espinho
do vale humilde, na ensombrada curva.
O salmo verdadeiro
de tênue voz torna hoje
lento o meu coração e dá-me aos lábios
a palavra quebrantada e trêmula.
Meus velhos mares dormem: apagam-se
as espumas sonoras
sobre a praia estéril. A borrasca
longe vai-se na nuvem irritada.
Retorna a paz ao céu;
a brisa tutelar espalha aromas
outra vez sobre o campo, e eis que aparece
na solidão bendita a tua sombra.
Referência:
MACHADO, Antonio. En la miseria lenta
del caminho / Pela miséria lenta do caminho. Tradução de Wilton José Marques.
In: PAES, José Paulo (Organização, Nota Liminar e Posfácio). Transverso:
coletânea de poemas traduzidos. Edição bilíngue. Campinas, SP: Editora da
Unicamp, 1988. Em espanhol: p. 44; em português: p. 45. (Coleção ‘Viagens da
Voz’)
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