Pejado de suas habituais sugestões simbolistas, este poema “francês” de Pessoa voga em estados de transição entre a evanescência onírica e o real, a sonolência e a vigília, diante de túrbida atmosfera ao crepúsculo, configurando cenário que muito se presta às elegias e elucubrações metafísicas de um Alberto Caeiro.
Cisnes se evadem desse contexto vespertino, enquanto um órgão põe-se a planger por trás da “paisagem interrompida”: agora já apóstolos descrentes em miragens crepusculares, falante e sua musa, face a face, em meio às sombras onde Deus queda-se em silêncio, escutam passos em direção ao terreno mais escuro das ínferas paragens – como numa descida ao Hades.
Uma observação: embora tenha aposto, mais abaixo, a nota por meio da qual a tradutora informa que o poema em apreço teria sido escrito poucos dias antes do falecimento de Fernando Pessoa (F.P.), verifiquei, posteriormente, que, de fato, foi ele redigido em 18-6-1915, por conseguinte, mais ou menos vinte anos antes de seu passamento.
O que poderia ter levado ao equívoco, presumo, teria sido a fixação da data – pelo menos no tomo que possuo das obras poéticas de F.P., editado pela Nova Aguilar –, no início de cada poema e não em seu final, como de costume: consigne-se que o poema sequente ao que ora se comenta (“Les sourire de tes yeux bleus”) é datado de 22-11-1935, este sim, escrito poucos dias antes da morte do autor, a saber, em 30-11-1935.
J.A.R. – H.C.
Fernando Pessoa
(1888-1935)
Le crépuscule este
tiède... (*)
Aux volets clos de votre rêve épanoui
Laisse mon âme avoir son regret vers les nuits (?)
Le crépuscule est tiède au cœur de nos regrets,
Oisif, comme un jet d’eau incliné dans le vent,
Il se fait dans mon cœur un soir fictif et lent
Fait de l’octroi courbé sur les plus noirs reflets.
Ta voix occupe, peu à peu, les somnolences,
Espaces inconnus entre les atomes de l’heure,
Et sans que nous sachions de quel côté l’on pleure
Le feuillage en torpeur rumine des démences.
Tout être est clos ainsi qu’un coffret de ivoire,
Tout moment tombe comme feuille morte,
Bientôt je n’aurai plus de rivières où boire
L’ivresse dont l’idée comme une brise m’emporte.
Par saccades un souffle attiédi met
Des bas-reliefs de rêve aux attentes de l’heure.
Nous aurons bientôt fait de nos pleurs. Mes regrets
Comme un son finissant dans l’air éteint meurent.
Ma sœur, il est trop tard. Il est toujours trop
tard.
Le vent a soulevé les blés parmi mes rêves.
Portez vos mains sur mon cœur las. Il bat et l’art
De se plaindre s’affaiblit à mon attente brève.
Souriez de vos pieds nus posés un moment lucide
Sur les pierres du quai. Ce sera l’épithète
Que Dieu aura trouvé pour votre corps acide
Au palais de notre heure éprise de défaite.
Je me souviens. C’était au bord du fleuve noir.
Les cygnes avaient fui vers des regards des autres.
Notre attitude était celle, triste, d’apôtres
Qui ont perdu leur foi dans les rêves du soir.
Vous étiez toute mise à l’ombre.
Un orgue las Pleurait derrière le paysage
interrompu.
Nous nous regardions dans l’ombre où Dieu s’est tu.
Et il n’y avait de bruit qu’une fuite de pas
Vers la mort, et dans l’ombre sonnant toujours plus
bas.
O crepúsculo na cidade visto da janela
(Elaine Plesser: pintora norte-americana)
É morno o pôr do sol...
Vosso sonho fechou as janelas, florido,
Deixa a minha alma dar às noites seus gemidos (?)
É morno o pôr do sol no cerne dos queixumes,
Qual jato de água curvo ao vento, é todo ocioso,
Em mim, o entardecer, fingido e vagaroso,
Brota, descendo sobre os reflexos negrumes.
Aos poucos, tua voz ocupa as sonolências,
Ignotos lapsos entre os átomos da hora,
E sem sabermos de onde alguém, baixinho, chora,
Os ramos em torpor ruminam só demências.
Qual caixa de marfim se fecha todo ser,
Qual folha morta cai enfim todo momento,
Logo não terei mais regato onde beber
O vinho que me faz voar em pensamento.
E, bruscamente, o sopro amornecido deixa
Mossas de sonho sobre as esperas do instante.
Nós choraremos dentro em breve. E as minhas
queixas,
Quais som que morre no ar, estão agonizantes.
Como sempre, tardou, irmã, tardou demais.
Pois o vento me ergueu o trigo entre as quimeras
Senti meu coração pulsante e lasso de ais.
Minguou a arte da queixa, à minha breve espera.
Sem calçados, pisais, com rara lucidez,
No porto. Sorri: é o epíteto que, exato,
Deus vos encontrará ao corpo em acidez,
No paço consagrado ao nosso desbarato.
Lembro-me. Junto ao rio escuro e negro, à margem.
Com os cisnes buscando olhares diferentes.
Nós agíamos como apóstolos plangentes
Que perderam a fé nas vesperais miragens.
Estáveis totalmente à sombra. E aquele lasso
Órgão chorava atrás do quadro interrompido.
Nós, à sombra em que Deus ficou emudecido,
Face a face, e o rumor da fuga de alguns passos
Rumo à morte, e na sombra, a perder-se no espaço.
Nota da Tradutora:
(*) Fernando Pessoa escreveu este poema poucos dias antes de morrer.
Referência:
PESSOA, Fernando. Le crépuscule este
tiède... / É morno o pôr do sol... Tradução de Renata Cordeiro. In: CORDEIRO, Renata (Concepção e tradução). Pequena
antologia de poemas franceses: de François Villon a Fernando
Pessoa. São Paulo, SP: Landy, 2002. Em francês: p. 114; em português: p. 92-93.
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