As coisas transcorrem no quotidiano mantendo em segredo o seu mais profundo significado – e o poeta bem percebe o quanto, em boa medida, tornam-se baldadas as nossas tentativas de “exploração e de interpretação do estar-no-mundo”: veja-se que Drummond inicia o poema afirmando que “a poesia é incomunicável”, mas nem por isso deixou de lavrar o seu terreno, por décadas, trazendo-nos belíssimos “insights”!
“Não ame”. “Não diga nada”. “Não conte”. “Não peça”. Imperativos negativos a revelar o quadro de impossibilidades que se expõem ao ente lírico, enquanto lhe parece que aos demais se oferece um cenário deveras prodigioso: o falante expressa certo ceticismo religioso e, a difundir ou postular valores ou virtudes cristãs, opta pelo silêncio – no qual enigmaticamente a poesia se abriga.
J.A.R. – H.C.
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
Segredo
A poesia é incomunicável.
Fique torto no seu canto.
Não ame.
Ouço dizer que há tiroteio
ao alcance do nosso corpo.
É a revolução? o amor?
Não diga nada.
Tudo é possível, só eu impossível.
O mar transborda de peixes.
Há homens que andam no mar
como se andassem na rua.
Não conte.
Suponha que um anjo de fogo
varresse a face da terra
e os homens sacrificados
pedissem perdão.
Não peça.
Em: “Brejo das Almas” (1934)
Anjo de Fogo
(Natalia Pietsch: pintora russa)
Referência:
ANDRADE, Carlos Drummond. Segredo. In:
__________. Antologia poética (organizada pelo autor). Prefácio de Marco
Lucchesi. 48. ed. Rio de Janeiro, RJ: Record, 2001. p. 317.
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