Em evidente intertextualidade com o introito do Evangelho de João, o poeta goiano propõe-se elencar, nestes versos, todas as coisas que estariam no início da “criação” poética, não exatamente aquelas insertas no texto bíblico, senão outras que logo se incorporam ao seu imbricado jogo de sentidos, recorrendo, para tanto, a termos comumente empregados em decomposições sintáticas, v.g., “verbo”, “sujeitos” e “predicados”.
Observa-se às claras o emprego da função metalinguística no poema – tem-se um metapoema, por conseguinte –, e de neologismos – no singular, melhor seria, pois refiro-me a “finício”, aglutinação de fim + início –, para mais à frente, como corolário do discurso então deduzido, se epilogar o que seria exatamente a labuta literária: “um osso duro de roer”.
J.A.R. – H.C.
Gilberto M. Teles
(n. 1931)
Criação
A Carlos Nejar
O verbo nunca esteve no início
dos grandes acontecimentos.
No início estamos nós, sujeitos
sem predicados,
tímidos,
embaraçados,
às voltas com mil pequenos problemas
de delicadezas,
de tentativas e recuos,
neste jogo que se improvisa à sombra
do bem e do mal.
No início estão as reticências,
este-querer-não-querendo,
os meios-tons,
a meia-luz,
os interditos
e as grandes hesitações
que se iluminam
e se apagam de repente.
No início não há memória nem sentença,
apenas um jeito do coração
enunciar que uma flor vai-se abrindo
no seu dia de festa, ou de verão.
No início ou no fim (tudo é finício)
a gente se lembra de que está mesmo com Deus
à espera de um grande acontecimento,
mas nunca se dá conta de que é preciso
ir roendo,
roendo,
roendo
um osso duro de roer.
Em: “Álibis” (2001)
A mão de Deus
(Herbert Mandel: pintor norte-americano)
Referência:
TELES, Gilberto Mendonça. Criação. In:
__________. Melhores poemas de Gilberto Mendonça Teles. Seleção e
introdução de Luiz Busatto. 4. ed. revista, ampliada e atualizada. São Paulo,
SP: Global, 2007. p. 245-246. (Coleção ‘Melhores Poemas’)
Nenhum comentário:
Postar um comentário