Nesta que é uma das obras mais sardônicas que jamais terei lido, o escritor italiano põe nos lábios da personagem “Gog”, quem sabe, as suas próprias perspectivas do que sejam as manifestações do mundo, especialmente aquelas que surgem mediante as ações dos homens: em linha com os interesses deste blog, há, em especial, dois excursos, a saber, “As obras-primas da literatura”, que ora transcrevo à apreciação do leitor, e “A indústria da poesia”, este já bem longo e que, talvez, mais tarde, resulte numa postagem neste sítio.
Sobre o tomo propriamente dito, “Gog”, de 1931, o escritor, tradutor e jornalista carioca Luiz Carlos Lisboa tece os comentários que antecedem a seção atinente ao texto propriamente dito de Papini. Quanto às notas prévias às referências, são de minha autoria, em busca de esclarecer os termos empregados e de identificar as obras a que aludem, a meu ver, as irônicas sínteses do autor italiano.
J.A.R. – H.C.
Giovanni Papini
(1881-1956)
Gog - Giovanni Papini
(LISBOA, 1990, p.
150-151)
A antiga técnica de
supor que escrever um diário permite ao autor discutir todos os assuntos e
manter-se como observador identificado com o personagem. Goggius, conhecido
como Gog, é uma natureza esgotada que, tendo tudo experimentado, ainda procura
uma possibilidade de salvação, na forma de um novo entusiasmo. A má-fé e o
esnobismo são revelados nas pessoas e no mundo, pelos olhos do autor. Gog
enriqueceu nos Estados Unidos, abandonou os negócios e iniciou uma vida de
experiências e refinamentos. Assim, despreza algumas obras-primas como carentes
de sentido e procura em homens célebres a resposta para a vida e a morte, o que
evidentemente não encontra. Suas entrevistas com Gandhi, Ford, Freud, Einstein,
Lênin e Shaw são maliciosas e sagazes. Gog quer ser o Anticristo, já que não
pode ser Deus, mas não consegue divertir-se nem ser feliz por um momento.
O dinheiro afinal não
pode nada, ao contrário do que havia pensado o personagem no início de sua
carreira. O que ele lamenta é que nem célebre consegue tornar-se. Gog é o
símbolo do mundo insatisfeito, poderoso e entediado dos nossos dias. Talvez
Cristo, para o autor, seja a solução — mas isso só vai parecer real na vida de
Papini um pouco mais tarde. Em Um homem acabado (1913), confessadamente
autobiográfico, Papini recorda uma infância infeliz e revela uma inquietação
religiosa. Aos vinte e dois anos funda um semanário, que vive apenas dois anos.
Vieram outros, depois, e afinal ele é redator-chefe de Il Regno, em Florença.
Essa vida ligada ao jornalismo revelou a Papini (e a Gog) um pouco de tudo o
que existe no mundo, despojando-o de ilusões de toda espécie.
Papini sofreu sempre
com um desejo de certeza que habitava seu espírito. Sua conversão ao catolicismo
teve enorme repercussão. Sua História de Cristo (1921) foi traduzida em
todas as línguas. Depois de O diabo, livro polêmico, de Santo
Agostinho e de um volume de poesias (Espião do mundo, 1955), algumas
evocações ao passado foram reunidas em A felicidade de ser infeliz. Esse
livro póstumo, no entanto, conheceu pouca divulgação.
Capa de uma das
edições italianas de “Gog”
As obras-primas da
literatura
Cuba, 7 de novembro
(PAPINI, [197-?], p.
6-7)
Para fins pessoais,
precisava conhecer aquelas que os professores dos colleges (*) chamam as
“obras-primas da literatura”. Encomendei a um bibliotecário formado, que me
havia sido indicado como muito eficiente, uma lista condensada, pedindo que
obtivesse os livros nas melhores edições. Assim que tive nas mãos estes
tesouros não atendi mais ninguém e não me levantei mais da cama.
A princípio fiquei
decepcionado e pareceu-me incrível que tais humbugs (**) fossem
realmente o produto de primeira qualidade do espírito humano. O que não
entendia, me parecia inútil; o que entendia não me divertia ou me ofendia.
Coisas absurdas, cacetes: às vezes insignificantes ou nauseabundas. Narrativas
que se verdadeiras me pareciam inverossímeis, e bobas se inventadas. Escrevi a
um célebre professor da Universidade de W. perguntando se aquela lista era boa.
Respondeu que sim, e me conformei. Tive forças para ler todos os livros, menos
três ou quatro que não consegui suportar além das primeiras páginas.
Bandos de homens,
ditos heróis, que se estriparam durante dez anos seguidos sob os muros de uma
cidadezinha por causa de uma velha seduzida [a]; a viagem de um vivo no funil
dos mortos como pretexto para falar mal dos mortos e dos vivos [b]; um louco
magro e um louco gordo que andam pelo mundo em busca de pauladas [c]; um
guerreiro que perde a razão por uma mulher e se diverte barbeando os carvalhos
das florestas [d]; um covarde ao qual mataram o pai e que para vingá-lo faz
morrer uma moça que o ama e outras personagens várias [e]; um diabo aleijado que
arranca os telhados das casas para exibir suas vergonhas [f]; as aventuras de
um homem médio que banca o gigante entre os pigmeus e o anão entre os gigantes,
igualmente inoportuno e ridículo [g]; a odisseia de um idiota que através de
uma sequência de cômicas tragédias sustenta ser este o melhor dos mundos [h];
as peripécias de um professor demoníaco servido por um demônio profissional [i];
a tediosa história de uma adúltera de província que se aborrece e no final se
envenena [j]; as tiradas loquazes e incompreensíveis de um profeta acompanhado
por uma águia e uma serpente [k]; um jovem pobre e febril que mata uma velha e
depois, imbecil, não sabe sequer gozar o fruto do furto e acaba por cair nas
mãos da polícia [l].
Pareceu-me entender,
com minha cabeça virgem, que a tão exaltada literatura está apenas na idade na
pedra, o que me desiludiu profundamente.
Contratei um
especialista de poesia que tentou me confundir dizendo que aquelas obras valiam
pelo estilo, a forma, a língua, as imagens, os pensamentos e que um espírito
educado podia tirar delas a maior satisfação. Respondi que para mim, obrigado a
ler quase todos aqueles livros em traduções, a forma interessava pouco e o
conteúdo me parecia, assim como é, antiquado, insensato, burro e extravagante.
Gastei cem dólares nesta consulta, sem nenhum proveito.
Felizmente conheci
mais tarde alguns escritores jovens que confirmaram meu julgamento sobre
aquelas velhas obras e me deram seus livros, onde encontrei, em meio a muitas
coisas nebulosas, um alimento mais apropriado para meus gostos. Ficou-me,
porém, a dúvida de que a literatura seja incapaz de aperfeiçoamentos decisivos:
é muito provável que ninguém, daqui a um século, se dedique a uma indústria tão
atrasada e pouco rendosa.
Notas:
[*]. Colleges – faculdades, universidades.
[**]. Humbugs – farsas, fraudes,
embustes, imposturas.
[a]. Ilíada, de Homero (~VIII a.C.).
[b]. A Divina Comédia, de Dante
Alighieri (1472).
[c]. Dom Quixote, de Miguel de
Cervantes (1605).
[d]. Orlando Furioso, de Ludovico
Ariosto (1516).
[e]. Hamlet, de William Shakespeare (1603).
[f]. O Diabo Coxo, de Luis Veléz
Guevara (1641).
[g]. As Viagens de Gulliver, de Jonathan
Swift (1726).
[h]. Cândido, ou o Otimismo, de Voltaire
(1759).
[i]. Fausto, de Johann W. von Goethe (1790).
[j]. Madame Bovary, de Gustave Flaubert
(1856).
[k]. Assim Falou Zaratustra, de Friedrich
Nietzsche (1883).
[l]. Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski (1866).
Referências:
LISBOA, Luiz Carlos. Pequeno guia da literatura universal: através de quase duzentos livros que ninguém mais pode ignorar impunemente. 1. ed. São Paulo, SP: Círculo do Livro, 1990.
PAPINI, Giovanni. Gog. Tradução
de Marina Colasanti. Rio de Janeiro, GB: Nova Fronteira, [197-?].
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