Com raríssimos sinais de pontuação, este poema de Belo é capaz enseja tantas leituras quantas os leitores, embora, é claro, ao final, subsista o seu intento de rememorar os tempos idos e vividos, o que deixamos para trás, daí as notórias interpolações temporais entre os eventos que nele se descrevem, findos os quais se pode melhor apreciar se dignos fomos da vida que nos foi obsequiada.
Se “somos crianças feitas para grandes férias”, réplicas sem conta poderiam ser suscitadas por tal asserção: afinal, a grande maioria não está aqui a passeio (rs)! Seja como for, cabe-nos extrair da vida momentos de enlevo, porque, se assim não for, que proveito tiraremos de toda a fadiga sobre a terra?! Com efeito: “Assim que tenho visto que não há coisa melhor do que alegrar-se o homem nas suas obras, porque essa é a sua porção; porque quem o levará para ver o que será depois dele?” (Ec 3: 22).
J.A.R. – H.C.
Ruy Belo
(1933-1978)
Orla Marítima
O tempo das suaves raparigas
é junto ao mar ao longo da avenida
ao sol dos solitários dias de dezembro
Tudo ali para como nas fotografias
É a tarde de agosto o rio a música o teu rosto
alegre e jovem hoje ainda quando tudo ia mudar
És tu surges de branco pela rua antigamente
noite iluminada noite de nuvens ó melhor mulher
(E nos alpes o cansado humanista canta alegremente)
“Mudança possui tudo”? Nada muda
nem sequer o cultor dos sistemáticos cuidados
levanta a dobra da tragédia nestas brancas horas
Deus anda à beira de água calça arregaçada
como um homem se deita como um homem se levanta
Somos crianças feitas para grandes férias
pássaros pedradas de calor
atiradas ao frio em redor
pássaros compêndios de vida
e morte resumida agasalhada em asas
Ali fica o retrato destes dias
Gestos e pensamentos tudo fixo
Manhã dos outros não nossa manhã
pagão solar de uma alegria calma
De terra vem a água e da água a alma
o tempo é a maré que leva e traz
o mar às praias onde eternamente somos
Sabemos agora em que medida merecemos a vida
Em: “Homem de Palavras” (1970)
Camille na praia em Trouville
(Claude Monet: pintor francês)
Referência:
BELO, Ruy. Orla marítima. In:
__________. Poemas. 1. ed. Lisboa, PT: Editorial Presença, 1993. p. 20.
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