Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 20 de abril de 2021

Ruy Belo - Orla Marítima

Com raríssimos sinais de pontuação, este poema de Belo é capaz enseja tantas leituras quantas os leitores, embora, é claro, ao final, subsista o seu intento de rememorar os tempos idos e vividos, o que deixamos para trás, daí as notórias interpolações temporais entre os eventos que nele se descrevem, findos os quais se pode melhor apreciar se dignos fomos da vida que nos foi obsequiada.

Se “somos crianças feitas para grandes férias”, réplicas sem conta poderiam ser suscitadas por tal asserção: afinal, a grande maioria não está aqui a passeio (rs)! Seja como for, cabe-nos extrair da vida momentos de enlevo, porque, se assim não for, que proveito tiraremos de toda a fadiga sobre a terra?! Com efeito: “Assim que tenho visto que não há coisa melhor do que alegrar-se o homem nas suas obras, porque essa é a sua porção; porque quem o levará para ver o que será depois dele?” (Ec 3: 22).

J.A.R. – H.C.

 


Ruy Belo

(1933-1978)

 

Orla Marítima

 

O tempo das suaves raparigas

é junto ao mar ao longo da avenida

ao sol dos solitários dias de dezembro

Tudo ali para como nas fotografias

É a tarde de agosto o rio a música o teu rosto

alegre e jovem hoje ainda quando tudo ia mudar

És tu surges de branco pela rua antigamente

noite iluminada noite de nuvens ó melhor mulher

(E nos alpes o cansado humanista canta alegremente)

“Mudança possui tudo”? Nada muda

nem sequer o cultor dos sistemáticos cuidados

levanta a dobra da tragédia nestas brancas horas

Deus anda à beira de água calça arregaçada

como um homem se deita como um homem se levanta

Somos crianças feitas para grandes férias

pássaros pedradas de calor

atiradas ao frio em redor

pássaros compêndios de vida

e morte resumida agasalhada em asas

Ali fica o retrato destes dias

Gestos e pensamentos tudo fixo

Manhã dos outros não nossa manhã

pagão solar de uma alegria calma

De terra vem a água e da água a alma

o tempo é a maré que leva e traz

o mar às praias onde eternamente somos

Sabemos agora em que medida merecemos a vida

 

Em: “Homem de Palavras” (1970)

 

Camille na praia em Trouville

(Claude Monet: pintor francês)


Referência:

BELO, Ruy. Orla marítima. In: __________. Poemas. 1. ed. Lisboa, PT: Editorial Presença, 1993. p. 20.

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