Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 8 de abril de 2021

Lya Luft - Perdas & Ganhos

Servindo quase que como uma epígrafe à sua prestigiada obra “Perdas & Ganhos”, de 2003, estes poemas da escritora e tradutora gaúcha são reflexões de alguém que, em seu íntimo, interroga-se sobre o que lhe arquiteta a vida, ávida ainda por recomeços. Com efeito: “A vida pode florescer / numa existência inteira. / Mas tem de ser buscada, tem de ser / conquistada”.

Mostra-se particularmente extraordinária a percepção da autora em descortinar cenários para os dias vindouros, ela que já contabiliza “Perdas & Ganhos” substanciais em pleno outono da lida – exato ciclo em que o ato da criação pode se notabilizar pela naturalidade com que se manifesta, porque maduro e livre da obrigação de ter que provar o que quer que seja.

J.A.R. – H.C.

 

Lya Luft

(n. 1938)

 

1. Convite

 

Não sou a areia

onde se desenha um par de asas

ou grades diante de uma janela.

Não sou apenas a pedra que rola

nas marés do mundo,

em cada praia renascendo outra.

Sou a orelha encostada na concha

da vida, sou construção e desmoronamento,

servo e senhor, e sou

mistério.

 

A quatro mãos escrevemos o roteiro

para o palco de meu tempo:

o meu destino e eu.

Nem sempre estamos afinados,

nem sempre nos levamos

a sério.

 

(LUFT, 2004, p. 12)

 

2. Desenhando no fundo do espelho

 

Fruto de enganos ou de amor,

nasço de minha própria contradição.

O contorno da boca,

a forma da mão, o jeito de andar

(sonhos e temores incluídos)

virão desses que me formaram.

Mas o que eu traçar no espelho

há de se armar também

segundo o meu desejo.

 

Terei meu par de asas

cujo voo se levanta desses

que me dão a sombra onde eu cresço

– como, debaixo da árvore,

um caule

e sua flor.

 

(LUFT, 2004, p. 20)

 

3. Domesticar para não ser devorado

 

Não é preciso consenso

nem arte,

nem beleza ou idade:

a vida é sempre dentro

e agora.

(A vida é minha

para ser ousada.)

 

A vida pode florescer

numa existência inteira.

Mas tem de ser buscada, tem de ser

conquistada.

 

(LUFT, 2004, p. 60)

 

4. Perder sem perder

 

Foram-se os amores que tive

ou me tiveram:

partiram

num cortejo silencioso e iluminado.

O tempo me ensinou

a não acreditar demais na morte

nem desistir da vida: cultivo

alegrias num jardim

onde estamos eu, os sonhos idos,

os velhos amores e seus segredos.

E a esperança – que rebrilha

como pedrinhas de cor entre as raízes.

 

(Em: “Secreta mirada”, 1997)

 

(LUFT, 2004, p. 102)

 

5. Tempo de viver

 

Se houver um tempo de retorno,

eu volto.

Subirei, empurrando a alma

com meu sangue

por labirintos e paradoxos

– até inundar novamente o coração.

 

(Terei, quem sabe, o mesmo ardor

de antigamente.)

 

(Em: “Mulher no palco”, 1984)

 

(LUFT, 2004, p. 152)

 

Na esplanada Lathuille

(Édouard Manet: pintor francês)


Referência:

LUFT, Lya. Perdas & ganhos. 19. ed. Rio de Janeiro, RJ: Record, 2004.

Nenhum comentário:

Postar um comentário