Servindo quase que como uma epígrafe à sua prestigiada obra “Perdas & Ganhos”, de 2003, estes poemas da escritora e tradutora gaúcha são reflexões de alguém que, em seu íntimo, interroga-se sobre o que lhe arquiteta a vida, ávida ainda por recomeços. Com efeito: “A vida pode florescer / numa existência inteira. / Mas tem de ser buscada, tem de ser / conquistada”.
Mostra-se particularmente extraordinária a percepção da autora em descortinar cenários para os dias vindouros, ela que já contabiliza “Perdas & Ganhos” substanciais em pleno outono da lida – exato ciclo em que o ato da criação pode se notabilizar pela naturalidade com que se manifesta, porque maduro e livre da obrigação de ter que provar o que quer que seja.
J.A.R. – H.C.
Lya Luft
(n. 1938)
1. Convite
Não sou a areia
onde se desenha um par de asas
ou grades diante de uma janela.
Não sou apenas a pedra que rola
nas marés do mundo,
em cada praia renascendo outra.
Sou a orelha encostada na concha
da vida, sou construção e desmoronamento,
servo e senhor, e sou
mistério.
A quatro mãos escrevemos o roteiro
para o palco de meu tempo:
o meu destino e eu.
Nem sempre estamos afinados,
nem sempre nos levamos
a sério.
(LUFT, 2004, p. 12)
2. Desenhando no fundo do espelho
Fruto de enganos ou de amor,
nasço de minha própria contradição.
O contorno da boca,
a forma da mão, o jeito de andar
(sonhos e temores incluídos)
virão desses que me formaram.
Mas o que eu traçar no espelho
há de se armar também
segundo o meu desejo.
Terei meu par de asas
cujo voo se levanta desses
que me dão a sombra onde eu cresço
– como, debaixo da árvore,
um caule
e sua flor.
(LUFT, 2004, p. 20)
3. Domesticar para não ser devorado
Não é preciso consenso
nem arte,
nem beleza ou idade:
a vida é sempre dentro
e agora.
(A vida é minha
para ser ousada.)
A vida pode florescer
numa existência inteira.
Mas tem de ser buscada, tem de ser
conquistada.
(LUFT, 2004, p. 60)
4. Perder sem perder
Foram-se os amores que tive
ou me tiveram:
partiram
num cortejo silencioso e iluminado.
O tempo me ensinou
a não acreditar demais na morte
nem desistir da vida: cultivo
alegrias num jardim
onde estamos eu, os sonhos idos,
os velhos amores e seus segredos.
E a esperança – que rebrilha
como pedrinhas de cor entre as raízes.
(Em: “Secreta mirada”, 1997)
(LUFT, 2004, p. 102)
5. Tempo de viver
Se houver um tempo de retorno,
eu volto.
Subirei, empurrando a alma
com meu sangue
por labirintos e paradoxos
– até inundar novamente o coração.
(Terei, quem sabe, o mesmo ardor
de antigamente.)
(Em: “Mulher no palco”, 1984)
(LUFT, 2004, p. 152)
Na esplanada Lathuille
(Édouard Manet: pintor francês)
Referência:
LUFT, Lya. Perdas & ganhos. 19. ed. Rio de Janeiro, RJ: Record, 2004.
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