Neste poema – que é um facundo panegírico à aura etérea e misteriosa da realidade e sua beleza –, Adélia expõe, em linhas coloquiais, os motivos pelos quais deveríamos manter vivo o espírito perscrutador perante o sistema multifacético de incógnitas a reproduzir as leis que governam a estrutura e o funcionamento da ‘máquina do mundo’.
Para quem tem muito por desvendar, eis aqui uma heurística do olhar, com potencial para deslindar as chaves deste esfíngico ‘puzzle’, suas sístoles e diástoles, num inventário do quotidiano e de eventos da natureza, a emergir do arquetípico cadinho em que, com frequência, a mente humana recorre para tonificar suas ‘raisons de vivre’.
J.A.R. – H.C.
Adélia Prado
(n. 1935)
Móbiles
Que belo poema se poderia escrever.
Coisas espicaçadoras não faltam,
hortigranjeiros esperando transporte
e tudo que é necessário:
tenho que fazer o almoço.
Ou supostamente ético:
batia gente na porta,
Tialzi no corador virava as calcinhas todas
de modo a esconder o fundo.
Uma laranjeira rebrota,
preciosa árvore do mato dá espinhos,
folhinhas miúdas, flores cujas pétalas
são fios agrupados em contas de odorífero ouro.
Elas explicam o mundo como os pintinhos explicam,
perfeitos até as unhas, emplumados, vivos,
invencível delicadeza
que homem algum já fez com sua mão.
Surpreendido de noite com a mão nos ouvidos,
o moço dizia: não durmo, é a música do bar,
este galo seu que canta fora de hora.
Mentira. É por causa da vida que não dorme,
da zoeira sem fim que a vida faz.
Quer casar e não pode,
seu emprego é mau,
seu pâncreas, ingrato e preguiçoso.
Eu me casei e tenho a mesma medida de aflição.
O dia passa, a noite, saio da sombra e digo:
é só isso que eu quero,
ficar no sol até enrugar o couro.
Mas vai-se o sol também atrás do morro,
a noite vem e passa sobre mim
que longe de espelhos alimento sonhos
quanto a viagens, glórias,
homens raros me ofertando colares, palavras
que se podem comer, de tão doces,
de tão aquecidas, corporificadas.
A parreira verga de flores,
eu durmo inebriada,
achando pouca a beleza do mundo,
ansiando a que não passa nem murcha
nem fica alta, nem longe,
nem foge de encontrar meu duro olhar de gula.
A beleza imóvel,
a cara de Deus que vai matar minha fome.
O conúbio dos móbiles
(Yvonne Jean Rabie: pintora libanesa)
Referência:
PRADO, Adélia. Móbiles. In: __________.
Terra de Santa Cruz. Rio de Janeiro, RJ: Record. 2006. p. 19-20.
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