Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 14 de abril de 2021

Adélia Prado - Móbiles

Neste poema – que é um facundo panegírico à aura etérea e misteriosa da realidade e sua beleza –, Adélia expõe, em linhas coloquiais, os motivos pelos quais deveríamos manter vivo o espírito perscrutador perante o sistema multifacético de incógnitas a reproduzir as leis que governam a estrutura e o funcionamento da ‘máquina do mundo’.

Para quem tem muito por desvendar, eis aqui uma heurística do olhar, com potencial para deslindar as chaves deste esfíngico ‘puzzle’, suas sístoles e diástoles, num inventário do quotidiano e de eventos da natureza, a emergir do arquetípico cadinho em que, com frequência, a mente humana recorre para tonificar suas ‘raisons de vivre’.

J.A.R. – H.C.

 

Adélia Prado

(n. 1935)

 

Móbiles

 

Que belo poema se poderia escrever.

Coisas espicaçadoras não faltam,

hortigranjeiros esperando transporte

e tudo que é necessário:

tenho que fazer o almoço.

Ou supostamente ético:

batia gente na porta,

Tialzi no corador virava as calcinhas todas

de modo a esconder o fundo.

Uma laranjeira rebrota,

preciosa árvore do mato dá espinhos,

folhinhas miúdas, flores cujas pétalas

são fios agrupados em contas de odorífero ouro.

Elas explicam o mundo como os pintinhos explicam,

perfeitos até as unhas, emplumados, vivos,

invencível delicadeza

que homem algum já fez com sua mão.

Surpreendido de noite com a mão nos ouvidos,

o moço dizia: não durmo, é a música do bar,

este galo seu que canta fora de hora.

Mentira. É por causa da vida que não dorme,

da zoeira sem fim que a vida faz.

Quer casar e não pode,

seu emprego é mau,

seu pâncreas, ingrato e preguiçoso.

Eu me casei e tenho a mesma medida de aflição.

O dia passa, a noite, saio da sombra e digo:

é só isso que eu quero,

ficar no sol até enrugar o couro.

Mas vai-se o sol também atrás do morro,

a noite vem e passa sobre mim

que longe de espelhos alimento sonhos

quanto a viagens, glórias,

homens raros me ofertando colares, palavras

que se podem comer, de tão doces,

de tão aquecidas, corporificadas.

A parreira verga de flores,

eu durmo inebriada,

achando pouca a beleza do mundo,

ansiando a que não passa nem murcha

nem fica alta, nem longe,

nem foge de encontrar meu duro olhar de gula.

A beleza imóvel,

a cara de Deus que vai matar minha fome.

 

O conúbio dos móbiles

(Yvonne Jean Rabie: pintora libanesa)


Referência:

PRADO, Adélia. Móbiles. In: __________. Terra de Santa Cruz. Rio de Janeiro, RJ: Record. 2006. p. 19-20.

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