Diz-nos o poeta espanhol que a poesia, em sua essência, é inútil, servindo apenas para cortar a cabeça de um rei ou para seduzir uma garota – ou, em sua proposição definitiva derradeira, sem a conjunção alternativa “ou”, com uma asserção condicionando a outra, a saber, a mulher que se deixa seduzir para cortar a cabeça de um rei.
De fato, a poesia serve para sulcar o rio da memória – o tempo a amoldar-se como a sua “única matéria”. E é melhor que a cisão seja feita de forma impoluta, com o espírito íntegro, não estilhaçado, sem o que as ondas do desejo poderão comprometer o resultado, turvando a água – autêntica razão da existência.
J.A.R. – H.C.
Luis García Montero
(n. 1958)
La Poesía
La poesía es inútil, sólo sirve
para cortarle la cabeza a un rey
o para seducir a una muchacha.
Quizás sirve también,
si es que el agua es la muerte,
para rayar el agua con un sueño.
Y si el tiempo le otorga su única materia,
posiblemente sirva de navaja,
porque es mejor un corte limpio
cuando abrimos la piel de la memoria.
Con un cristal partido,
el deseo
hace heridas más sucias.
La poesía eres tú,
un corte limpio,
una raya en el agua
– si es que el agua es razón de la existência –,
la mujer que se deja seducir
para cortarle la cabeza a un rey.
En: “Completamente viernes” (1998)
A vigília noturna
(Alexander Roitburd: pintor ucraniano)
A Poesia
A poesia é inútil, serve apenas
para cortar a cabeça de um rei
ou para seduzir uma garota.
Talvez também sirva,
sendo a água equivalente à morte,
para sulcar a água com um sonho.
E se o tempo lhe outorga a sua única matéria,
possivelmente sirva de navalha,
porque um corte limpo é melhor
quando abrimos a pele da memória.
Com um vidro partido,
o desejo
torna as feridas mais sujas.
A poesia és tu,
um corte limpo,
um sulco na água
– sendo a água a razão da existência –,
a mulher que se deixa seduzir
para cortar a cabeça de um rei.
Em: “Completamente sexta-feira” (1998)
Referência:
MONTERO, Luis García. La
poesía. In: __________. Poética y poesía: Luis García Montero.
Madrid, ES: Fundación Juan March, 2005. p. 66. Disponível neste endereço.
Acesso em: 27 fev. 2021.
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