Mora (1933-2012), poeta nascido na Argentina e radicado no Brasil, numa sintaxe bastante singular, metaforiza o corpo da mulher, bem assim os atributos que, de resto, a conformam, numa ave a alçar voo, ainda que presa às vicissitudes terrenas – isto é, uma mulher que, presa, livre se movimenta por meio do inexpugnável corpo que habita.
Tudo se passa como se o parceiro a contemplasse de corpo presente e com o espírito a esvoaçar distante, a adejar em “epiderme impalpável” pelo imperscrutável universo feminino, regressando vez por outra a “habitar” o corpo que remanesce ao seu lado, domiciliando-o de “surpresa em surpresa”.
J.A.R. – H.C.
As Senhoritas de Avignon
(Pablo Picasso: pintor espanhol)
Corpo Habitável
Corpo habitável: sob
a epiderme impalpável
do céu logo se a soube
feminina, ocupável.
Âmbito: o em que se move
aquela que, afeita
a comover, comove
sabendo-se perfeita.
Humana: pelo enlevo
ao homem dá-se (esposa
fiel) sob o relevo
da sombra em que repousa.
Terrestre mas capaz
de ao pássaro a plumagem
devolver. Mesmo a paz
aos rostos sem imagem.
Como alçar-se ela apenas
sem que a terra se eleve
sob ambos pés? As penas,
perdendo-as, ficou leve.
Corpo habitável: pois
do pássaro expulso,
vive o homem, depois
de vê-la, sob seu pulso.
Rios sempre recentes
em seus braços: sem ossos,
caindo das nascentes
dos altos ombros, grossos.
Mais que seus olhos fundo
vai seu olhar: alcança
o céu? Pois a confundo
com a água que descansa.
Habita o puro espaço
das asas e apesar
de firme sob seu passo
ar pisa. Sem pesar.
Corpo habitável? Sim,
simples mulher que, presa,
livre move-se. Assim:
de surpresa em surpresa.
A lição de anatomia do Dr. Nicolaes Tulp
(Rembrandt van Rijn: pintor holandês)
Referência:
MORA, Octávio. Corpo habitável. In:
FIGUEIREDO, José Valle de (Compilador). Antologia da poesia brasileira.
Lisboa, PT: Editorial Verbo, s/d [197?]. p. 210-211.
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