Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 2 de abril de 2021

Octávio Mora - Corpo Habitável

Mora (1933-2012), poeta nascido na Argentina e radicado no Brasil, numa sintaxe bastante singular, metaforiza o corpo da mulher, bem assim os atributos que, de resto, a conformam, numa ave a alçar voo, ainda que presa às vicissitudes terrenas – isto é, uma mulher que, presa, livre se movimenta por meio do inexpugnável corpo que habita.

Tudo se passa como se o parceiro a contemplasse de corpo presente e com o espírito a esvoaçar distante, a adejar em “epiderme impalpável” pelo imperscrutável universo feminino, regressando vez por outra a “habitar” o corpo que remanesce ao seu lado, domiciliando-o de “surpresa em surpresa”.

J.A.R. – H.C.

 

As Senhoritas de Avignon

(Pablo Picasso: pintor espanhol)

 

Corpo Habitável

 

Corpo habitável: sob

a epiderme impalpável

do céu logo se a soube

feminina, ocupável.

 

Âmbito: o em que se move

aquela que, afeita

a comover, comove

sabendo-se perfeita.

 

Humana: pelo enlevo

ao homem dá-se (esposa

fiel) sob o relevo

da sombra em que repousa.

 

Terrestre mas capaz

de ao pássaro a plumagem

devolver. Mesmo a paz

aos rostos sem imagem.

 

Como alçar-se ela apenas

sem que a terra se eleve

sob ambos pés? As penas,

perdendo-as, ficou leve.

 

Corpo habitável: pois

do pássaro expulso,

vive o homem, depois

de vê-la, sob seu pulso.

 

Rios sempre recentes

em seus braços: sem ossos,

caindo das nascentes

dos altos ombros, grossos.

 

Mais que seus olhos fundo

vai seu olhar: alcança

o céu? Pois a confundo

com a água que descansa.

 

Habita o puro espaço

das asas e apesar

de firme sob seu passo

ar pisa. Sem pesar.

 

Corpo habitável? Sim,

simples mulher que, presa,

livre move-se. Assim:

de surpresa em surpresa.

 

A lição de anatomia do Dr. Nicolaes Tulp

(Rembrandt van Rijn: pintor holandês)


Referência:

MORA, Octávio. Corpo habitável. In: FIGUEIREDO, José Valle de (Compilador). Antologia da poesia brasileira. Lisboa, PT: Editorial Verbo, s/d [197?]. p. 210-211.

Nenhum comentário:

Postar um comentário