Permeado de perspectivas filosóficas e teológicas, ou melhor, ontológicas e metafísicas, as linhas do poeta fluem desencantadas e algo melancólicas, a confrontarem o ontem, esperançoso e cheio de perspectivas, com o hoje em cujas horas o vate se defronta com o panorama da finitude – como se estivesse a elaborar um inventário de perdas e ganhos – se é que, frente a toda a cética dicção de Drummond, tenha havido algum.
O baixar da “noite” em “coisa fria” não deixa de despertar o leitor para a beleza desse crepúsculo metafórico, no qual se entrelaçam estados emocionais, enfrentamentos diuturnos com o peso e a expressividade das palavras, ponderações sobre o percurso irreversível do tempo, a busca pelo sentido da vida, indagações teológicas intranscendentes – e, a despeito de isso tudo, a crença persuasiva de que o existir, mesmo sob tal estado de transe, deve continuar.
J.A.R. – H.C.
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
Elegia
Ganhei (perdi) meu dia.
E baixa a coisa fria
também chamada de noite, e o frio ao frio
em bruma se entrelaça, num suspiro.
E me pergunto e me respiro
na fuga deste dia que era mil
para mim que esperava
os grandes sóis violentos, me sentia
tão rico deste dia
e lá se foi secreto, ao serro frio.
Perdi minha alma à flor do dia ou já perdera
bem antes sua vaga pedraria?
Mas quando me perdi, se estou perdido
antes de haver nascido
e me nasci votado à perda
de frutos que não tenho nem colhia?
Gastei meu dia. Nele me perdi.
De tantas perdas uma clara via
por certo se abriria
de mim a mim, estrela fria.
As arvores lá fora se meditam.
O inverno é quente em mim, que o estou berçando,
e em mim vai derretendo
este torrão de sal que está chorando.
Ah, chega de lamento e versos ditos
ao ouvido de alguém sem rosto e sem justiça,
ao ouvido do muro,
ao liso ouvido gotejante
de uma piscina que não sabe o tempo, e fia
seu tapete de água, distraída.
E vou me recolher
ao cofre de fantasmas, que a notícia
de perdidos lá não chegue nem açule
os olhos policiais do amor-vigia.
Não me procurem que me perdi eu mesmo
como os homens se matam, e as enguias
à loca se recolhem, na água fria.
Dia,
espelho de projeto não vivido,
e contudo viver era tão flamas
na promessa dos deuses; e é tão ríspido
em meio aos oratórios já vazios
em que a alma barroca tenta confortar-se
mas só vislumbra o frio noutro frio.
Meu Deus, essência estranha
ao vaso que me sinto, ou forma vã,
pois que, eu essência, não habito
vossa arquitetura imerecida;
meu Deus e meu conflito,
nem vos dou conta de mim nem desafio
as garras inefáveis: eis que assisto
a meu desmonte palmo a palmo e não me aflijo
de me tornar planície em que já pisam
servos e bois e militares em serviço
da sombra, e uma criança
que o tempo novo me anuncia e nega.
Terra a que me inclino sob o frio
de minha testa que se alonga,
e sinto mais presente quando aspiro
em ti o fumo antigo dos parentes,
minha terra, me tens; e teu cativo
passeias brandamente
como ao que vai morrer se estende a vista
de espaços luminosos, intocáveis:
em mim o que resiste são teus poros.
E sou meu próprio frio que me fecho
Corto o frio da folha. Sou teu frio.
E sou meu próprio frio que me fecho
longe do amor desabitado e líquido,
amor em que me amaram, me feriram
sete vezes por dia em sete dias
de sete vidas de ouro,
amor, fonte de eterno frio,
minha pena deserta, ao fim de março,
amor, quem contaria?
E já não sei se é jogo, ou se poesia.
Em: “Fazendeiro do Ar” (1954)
Morte e Vida
(Gustav Klimt: pintor austríaco)
Referência:
ANDRADE, Carlos Drummond de. Elegia.
In: __________. Antologia poética: organizada pelo autor. Prefácio de
Marco Lucchesi. 48. ed. Rio de Janeiro, RJ: Record, 2001. p. 336-338.
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