Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 11 de abril de 2021

Carlos Drummond de Andrade - Elegia

Permeado de perspectivas filosóficas e teológicas, ou melhor, ontológicas e metafísicas, as linhas do poeta fluem desencantadas e algo melancólicas, a confrontarem o ontem, esperançoso e cheio de perspectivas, com o hoje em cujas horas o vate se defronta com o panorama da finitude – como se estivesse a elaborar um inventário de perdas e ganhos – se é que, frente a toda a cética dicção de Drummond, tenha havido algum.

O baixar da “noite” em “coisa fria” não deixa de despertar o leitor para a beleza desse crepúsculo metafórico, no qual se entrelaçam estados emocionais, enfrentamentos diuturnos com o peso e a expressividade das palavras, ponderações sobre o percurso irreversível do tempo, a busca pelo sentido da vida, indagações teológicas intranscendentes – e, a despeito de isso tudo, a crença persuasiva de que o existir, mesmo sob tal estado de transe, deve continuar.

J.A.R. – H.C.

 

Carlos Drummond de Andrade

(1902-1987)

 

Elegia

 

Ganhei (perdi) meu dia.

E baixa a coisa fria

também chamada de noite, e o frio ao frio

em bruma se entrelaça, num suspiro.

 

E me pergunto e me respiro

na fuga deste dia que era mil

para mim que esperava

os grandes sóis violentos, me sentia

tão rico deste dia

e lá se foi secreto, ao serro frio.

 

Perdi minha alma à flor do dia ou já perdera

bem antes sua vaga pedraria?

Mas quando me perdi, se estou perdido

antes de haver nascido

e me nasci votado à perda

de frutos que não tenho nem colhia?

 

Gastei meu dia. Nele me perdi.

De tantas perdas uma clara via

por certo se abriria

de mim a mim, estrela fria.

As arvores lá fora se meditam.

O inverno é quente em mim, que o estou berçando,

e em mim vai derretendo

este torrão de sal que está chorando.

 

Ah, chega de lamento e versos ditos

ao ouvido de alguém sem rosto e sem justiça,

ao ouvido do muro,

ao liso ouvido gotejante

de uma piscina que não sabe o tempo, e fia

seu tapete de água, distraída.

 

E vou me recolher

ao cofre de fantasmas, que a notícia

de perdidos lá não chegue nem açule

os olhos policiais do amor-vigia.

Não me procurem que me perdi eu mesmo

como os homens se matam, e as enguias

à loca se recolhem, na água fria.

 

Dia,

espelho de projeto não vivido,

e contudo viver era tão flamas

na promessa dos deuses; e é tão ríspido

em meio aos oratórios já vazios

em que a alma barroca tenta confortar-se

mas só vislumbra o frio noutro frio.

 

Meu Deus, essência estranha

ao vaso que me sinto, ou forma vã,

pois que, eu essência, não habito

vossa arquitetura imerecida;

meu Deus e meu conflito,

nem vos dou conta de mim nem desafio

as garras inefáveis: eis que assisto

a meu desmonte palmo a palmo e não me aflijo

de me tornar planície em que já pisam

servos e bois e militares em serviço

da sombra, e uma criança

que o tempo novo me anuncia e nega.

 

Terra a que me inclino sob o frio

de minha testa que se alonga,

e sinto mais presente quando aspiro

em ti o fumo antigo dos parentes,

minha terra, me tens; e teu cativo

passeias brandamente

como ao que vai morrer se estende a vista

de espaços luminosos, intocáveis:

em mim o que resiste são teus poros.

E sou meu próprio frio que me fecho

Corto o frio da folha. Sou teu frio.

 

E sou meu próprio frio que me fecho

longe do amor desabitado e líquido,

amor em que me amaram, me feriram

sete vezes por dia em sete dias

de sete vidas de ouro,

amor, fonte de eterno frio,

minha pena deserta, ao fim de março,

amor, quem contaria?

E já não sei se é jogo, ou se poesia.

 

Em: “Fazendeiro do Ar” (1954)

 

Morte e Vida

(Gustav Klimt: pintor austríaco)


Referência:

ANDRADE, Carlos Drummond de. Elegia. In: __________. Antologia poética: organizada pelo autor. Prefácio de Marco Lucchesi. 48. ed. Rio de Janeiro, RJ: Record, 2001. p. 336-338.

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