Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 18 de abril de 2021

Cid Corman - A vida do artista

Corman formula certa perspectiva sobre a vida do artista, como um assalariado que, ao abrigo de um lar trivial, leva à frente o seu trabalho de pintar anjos de madeira, brilhando com “doçura, piedade e devoção”: tudo à volta revela um sentido de vínculo umbilical, verdadeiro ergástulo onde se atenuam os seus pendores de tigre.

Passando fome, ainda que ame e seja amado, pensa em suicídio e passa as noites a orar, afastando suas nefastas intenções, pois que contrárias ao seu credo e ao de seus genitores: ele, a exemplo dos anjos que pinta, não entoa um hino de glória, eis que suas asas o sobrecarregam, mantendo-o preso às contingências terrenas.

A vida do artista assemelha-se, assim, a uma devotada sujeição à vocação de labutar em proveito do transcendente e do numinoso – como diria Jung –, ainda que por pouco se pareça, sob o ponto de vista do poeta – penso cá com os meus botões –, a um processo de refinamento do espírito.

J.A.R. – H.C.

 

Cid Corman

(1924-2004)

 

The artist’s life

 

A home is the house of the angels.

He is a good son, a good brother, a good

wage-earner

He sleeps in the same room as the rest,

though he is an artist.

Being the child of a home

he is the artist of angels. He glows

with sweetness, piety, devotion.

He starves, though he loves and is loved.

The streets of his home are umbilical.

Where will he go?

He has lost the pace of the tiger in the cage.

Each night he silently prays,

but suicide is against his faith and that

of his parents.

He paints angels, wooden angels;

they do not sing, they do not have harps,

they stand bowed under their wooden wings.

If they had something to say, their words

would be wood.

 

Abraão e os Anjos

(Ricci Sebastiano: pintor italiano)

 

A vida do artista

 

Lar é a casa dos anjos.

Ele é bom filho, bom irmão, bom ganha-pão.

Dorme no mesmo quarto que os outros,

embora seja artista.

Filho que é do lar,

é o artista dos anjos. Reluz

doce, piedosa, devotamente

Passa fome embora ame e seja amado.

As ruas de seu lar são umbilicais.

Aonde irá?

Perdeu o ritmo do tigre na jaula.

Reza todas as noites em silêncio,

mas o suicídio é contra as crenças, suas

e dos pais.

Pinta anjos, anjos de madeira;

eles cantam, não têm harpas,

erguem-se arcados sob as asas de madeira.

Tivessem algo a dizer, suas palavras

seriam madeira.


Referência:

CORMAN, Cid. The artist’s life / A vida do artista. Tradução de Nelson Ascher. In: ASCHER, Nelson (Tradução e Organização). Poesia alheia: 124 poemas traduzidos. Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1998. Em inglês: p. 144; em português: p. 145. (Coleção “Lazuli”)

Nenhum comentário:

Postar um comentário