Corman formula certa perspectiva sobre a vida do artista, como um assalariado que, ao abrigo de um lar trivial, leva à frente o seu trabalho de pintar anjos de madeira, brilhando com “doçura, piedade e devoção”: tudo à volta revela um sentido de vínculo umbilical, verdadeiro ergástulo onde se atenuam os seus pendores de tigre.
Passando fome, ainda que ame e seja amado, pensa em suicídio e passa as noites a orar, afastando suas nefastas intenções, pois que contrárias ao seu credo e ao de seus genitores: ele, a exemplo dos anjos que pinta, não entoa um hino de glória, eis que suas asas o sobrecarregam, mantendo-o preso às contingências terrenas.
A vida do artista assemelha-se, assim, a uma devotada sujeição à vocação de labutar em proveito do transcendente e do numinoso – como diria Jung –, ainda que por pouco se pareça, sob o ponto de vista do poeta – penso cá com os meus botões –, a um processo de refinamento do espírito.
J.A.R. – H.C.
Cid Corman
(1924-2004)
The artist’s life
A home is the house of the angels.
He is a good son, a good brother, a good
wage-earner
He sleeps in the same room as the rest,
though he is an artist.
Being the child of a home
he is the artist of angels. He glows
with sweetness, piety, devotion.
He starves, though he loves and is loved.
The streets of his home are umbilical.
Where will he go?
He has lost the pace of the tiger in the cage.
Each night he silently prays,
but suicide is against his faith and that
of his parents.
He paints angels, wooden angels;
they do not sing, they do not have harps,
they stand bowed under their wooden wings.
If they had something to say, their words
would be wood.
Abraão e os Anjos
(Ricci Sebastiano: pintor italiano)
A vida do artista
Lar é a casa dos anjos.
Ele é bom filho, bom irmão, bom ganha-pão.
Dorme no mesmo quarto que os outros,
embora seja artista.
Filho que é do lar,
é o artista dos anjos. Reluz
doce, piedosa, devotamente
Passa fome embora ame e seja amado.
As ruas de seu lar são umbilicais.
Aonde irá?
Perdeu o ritmo do tigre na jaula.
Reza todas as noites em silêncio,
mas o suicídio é contra as crenças, suas
e dos pais.
Pinta anjos, anjos de madeira;
eles cantam, não têm harpas,
erguem-se arcados sob as asas de madeira.
Tivessem algo a dizer, suas palavras
seriam madeira.
Referência:
CORMAN, Cid. The artist’s life / A vida
do artista. Tradução de Nelson Ascher. In: ASCHER, Nelson (Tradução e
Organização). Poesia alheia: 124 poemas traduzidos. Rio de Janeiro, RJ:
Imago, 1998. Em inglês: p. 144; em português: p. 145. (Coleção “Lazuli”)
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