Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 18 de março de 2021

José Paulo Moreira da Fonseca - Monólogos de um Velho

O medo da morte assombra o ente lírico, mais especificamente um ser avançado em idade, para o qual o fato muito mais se traduz em estar na ordem natural das coisas. Mas morrer, para sempre, é um desfecho misterioso do qual ninguém ainda retornou, para nos dar conta do que sucede para além dos seus umbrais – ou, quiçá, a nos revelar desalentadoramente que, ali, nada mais se passa.

Entrementes, a sociedade emprega eufemismos para essa temporada outono-inverno: “melhor idade”, “terceira idade” ou que tais. Mas não há nada mais cruciante do que vermos os familiares declinarem em independência, mobilidade, saúde e lucidez com o passar dos anos, atingindo-lhes intensamente o lado emocional. Por que, em tal idade, não buscar o lado catártico da escrita e da poesia?! Aqui ela está, ao dispor!

J.A.R. – H.C.
 

José Paulo Moreira da Fonseca

(1922-2004)

 

Monólogos de um Velho

 

I

 

Nesta idade

da qual dizem estar na ordem natural das coisas

morrer

como se eu fosse alguém de outra espécie,

um bicho sem olhos nem voz

que se alveja ou se vai pisando

e cessa de ser

em silêncio...

Nesta idade

tudo está longe de mim

e eu mesmo pareço ter-me abandonado

a uma distância que não sei medir...

 

II

 

Confessam que vivo fora do tempo.

E quantos anos levo na alma

espelho onde tudo resvala,

nenhuma gota a mais,

apenas em certas tardes uma lâmina de sol

fere a água e ali sonha

qualquer dia perdido, um menos que imagem

imperdoavelmente longe.

 

III

 

Aqui,

espantando-me de minha idade,

temendo este traiçoeiro presente de vidro

a mostrar-me o abismo a meus pés,

tão perto.

Aqui, só,

como se fosse uma lembrança

que a memória esqueceu-se de apagar.

 

Velho Crepuscular

(Salvador Dalí: pintor espanhol) 


Referência:

FONSECA, José Paulo Moreira da. Monólogos de um velho. In: __________. O tempo e a sorte. Rio de Janeiro, GB: Tempo Brasileiro, 1968. p. 25-27. (Coleção “Tempoesia”; v. 8)

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