O medo da morte assombra o ente lírico, mais especificamente um ser avançado em idade, para o qual o fato muito mais se traduz em estar na ordem natural das coisas. Mas morrer, para sempre, é um desfecho misterioso do qual ninguém ainda retornou, para nos dar conta do que sucede para além dos seus umbrais – ou, quiçá, a nos revelar desalentadoramente que, ali, nada mais se passa.
Entrementes, a sociedade emprega eufemismos para essa temporada outono-inverno: “melhor idade”, “terceira idade” ou que tais. Mas não há nada mais cruciante do que vermos os familiares declinarem em independência, mobilidade, saúde e lucidez com o passar dos anos, atingindo-lhes intensamente o lado emocional. Por que, em tal idade, não buscar o lado catártico da escrita e da poesia?! Aqui ela está, ao dispor!
J.A.R. – H.C.
José Paulo Moreira da Fonseca
(1922-2004)
Monólogos de um Velho
I
Nesta idade
da qual dizem estar na ordem natural das coisas
morrer
como se eu fosse alguém de outra espécie,
um bicho sem olhos nem voz
que se alveja ou se vai pisando
e cessa de ser
em silêncio...
Nesta idade
tudo está longe de mim
e eu mesmo pareço ter-me abandonado
a uma distância que não sei medir...
II
Confessam que vivo fora do tempo.
E quantos anos levo na alma
espelho onde tudo resvala,
nenhuma gota a mais,
apenas em certas tardes uma lâmina de sol
fere a água e ali sonha
qualquer dia perdido, um menos que imagem
imperdoavelmente longe.
III
Aqui,
espantando-me de minha idade,
temendo este traiçoeiro presente de vidro
a mostrar-me o abismo a meus pés,
tão perto.
Aqui, só,
como se fosse uma lembrança
que a memória esqueceu-se de apagar.
Velho Crepuscular
(Salvador Dalí: pintor espanhol)
Referência:
FONSECA, José Paulo Moreira da.
Monólogos de um velho. In: __________. O tempo e a sorte. Rio de
Janeiro, GB: Tempo Brasileiro, 1968. p. 25-27. (Coleção “Tempoesia”; v. 8)
Nenhum comentário:
Postar um comentário