Aos olhos do poeta, a figura por vezes fuliginosa do urubu assemelha-se a um funcionário que se dispõe a promover a higienização e o equilíbrio sanitário dos terrenos inóspitos do sertão, onde são frequentes os óbitos de animais pela falta de água, em razão do rareamento das chuvas.
Enfatize-se o sentido a se extrair do fato de que o urubu mantém-se à custa da morte de animais, os quais, entrando em decomposição, servem-lhe de alimento, sobretudo no período das secas nordestinas, quando, então, o seu trabalho se redobra: um mobilizado necrófago, em posto civil e subalterno, como se um “convicto profissional liberal” fosse, jamais a abandonar, como as demais aves, o devastado sertão, pois que o seu ecossistema “preferencial”.
Os versos do poema são pejados de um certo humor negro, ao oferecer um panegírico ao urubu, o único “funcionário” que não emigra de um terreno assolado e carente de recursos, distintamente dos demais servidores que – seria impróprio afirmá-lo?! – levantam voo logo depois de perceberem que da gleba, objeto de rapina, já não mana “leite e mel”.
J.A.R. – H.C.
João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)
O urubu mobilizado
Durante as secas do Sertão, o urubu,
de urubu livre, passa a funcionário.
O urubu não retira, pois prevendo cedo
que lhe mobilizarão a técnica e o tacto,
cala os serviços prestados e diplomas,
que o enquadrariam num melhor salário,
e vai acolitar os empreiteiros da seca,
veterano, mas ainda com zelos de novato:
aviando com eutanásia o morto incerto,
ele, que no civil que o morto claro.
Embora mobilizado, nesse urubu em ação
reponta logo o perfeito profissional.
No ar compenetrado, curvo e conselheiro,
no todo de guarda-chuva, na unção clerical,
com que age, embora em posto subalterno:
ele, um convicto profissional liberal.
Búfalo morto, urubu-rei e urubus comuns
(Thomas Baines: pintor inglês)
Referência:
MELO NETO, João Cabral. O urubu
mobilizado. In: __________. Obra completa. Rio de Janeiro, RJ: Nova
Aguilar, 1995. p. 339-340.
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