Transcrevo, a seguir, um dos capítulos da obra em referência, por meio do qual o escritor Gilberto Moog tece incisivos comentários sobre o viés atribuído ao conceito de terrorismo, a depender de quem venha a deter ou não o poder da força para instituir diplomas legais que sirvam ao seu próprio proveito.
Polêmico e provocativo, o texto de Moog, seja como for, expressa um juízo de coragem para denunciar os contornos hipócritas que as mais poderosas nações do dito ocidente civilizado ocultam em seus discursos e ações, impondo, àquelas que vivem sob a opressão e o opróbrio, humilhações que deixam de atentar para o respeito aos direitos e à dignidade da pessoa humana, por elas próprias ordenados juridicamente, mas que somente a elas parecem valer – obviamente, quando lhes aprouver pelo juízo de oportunidade ou de conveniência.
J.A.R. – H.C.
Inferno
(Hans Memling: pintor flamengo)
Terrorismo
“A verdade não faz
tanto bem no mundo
como suas aparências
fazem mal.”
La Rochefoucauld
“Um absurdo
colossal pode tomar
a aparência de uma
grande verdade.”
William Cooper
Os conceitos de terrorismo vêm assim
expressos no dicionário Houaiss, o melhor e mais moderno da língua portuguesa:
“1 - Modo de impor a vontade pelo uso
sistemático do terror. 2 - Emprego sistemático da violência para fins
políticos, como a prática de atentados e destruições por grupos cujo objetivo é
a desorganização da sociedade existente e a tomada do poder. 3 - Regime de
violência instituído por um governo”
São exatos, quer se trate de terrorismo
de estado, terrorismo revolucionário, terrorismo político etc. As manifestações
do terror conceituadas têm em comum duas peculiaridades: a imposição ou tomada
autoritária do poder pela força e a violência de que se reveste a ação. São os
tipos que se conhece, praticados em todos os períodos da história.
A violência, sim, se encontra em todos
os atos terroristas, embora a intenção do atentado muitas vezes não vise a
causar danos generalizados. Mas, infelizmente, a consequência é que atinge
inocentes, que nada têm a ver com as razões da ação.
Por outro lado, não haverá nunca o ato
terrorista como definido acima, completamente gratuito, praticado sem qualquer
razão de ser. Talvez apenas o do louco, como o acontecido no oeste dos Estados
Unidos, em que foi explodido um edifício porque o autor, tomado por ódio indiscriminado,
resolveu vingar-se do mundo. Não é o ato que aqui nos interessa, o de pura
loucura e, por isso, tratado como tal. O nosso enfoque é o do terrorismo que tem
uma finalidade, pretende atingir um fim específico, atacando. Quase sempre quer
vencer, conquistar, dominar. Suas ações são absolutamente agressivas, que suas vítimas
consideram como ações de guerra.
Pode algum terrorismo ser caracterizado
por outra conotação que não aquelas referidas? Pode, com toda a certeza. O
terrorismo da resistência, o da aparente passividade do mais fraco, não o da
submissão, mas o que finge aceitar o domínio do vencedor ou explorador, para atingi-lo
de surpresa. Não pretende dominar quem quer que seja, ou vencer seu opositor, o
que sempre redunda impossível, nem, pela mesma razão, tirar vantagem econômica.
O terrorista da resistência quer apenas resistir, afirmar que não aceita o
domínio exploratório de seu país, de seu povo. Com os atos de terror que
pratica está proclamando ao mundo que, embora vencido, ele ainda existe, não
vai se submeter ao mais forte, resistirá até a morte e quer dar um basta aos
estragos que lhe são impostos, na economia, na religião, na cultura, na sociedade
de sua terra.
Essa resistência dificilmente será
pacífica. A única desse tipo que se conhece foi a liderada por Gandhi, na
Índia. Alguns poucos morreram, mormente indianos, mas ninguém reclamou, nem
mesmo os petulantes ingleses, que apenas ficaram surpresíssimos e atônitos com
o movimento. O mundo inteiro acompanhou atentamente o desenrolar dos fatos, que
desembocaram na independência do país, e solidarizou-se porque a razão estava
com a Índia. Imagine-se o mesmo Gandhi, se não fosse pacifista, mas sim um
aguerrido combatente pela libertação de seu povo, vendo que jamais teria forças
para expulsar os britânicos, e sabendo da simpatia do mundo pela sua causa,
talvez a incentivar a criação de um movimento terrorista, para com seus atos
chamar a atenção dos povos contra a Inglaterra. Uma bomba explodiria a Abadia
de Westminster e, outra, a ponte do rio Tâmisa. Certamente o mundo viria
abaixo. Que ousadia atentar contra o Império Britânico!
A reação fica por conta da tradição na
história segundo a qual o vencedor não pode ser atingido por atos covardes e à
sorrelfa dos vencidos. O vencedor define os atos históricos, impondo as regras
morais como bem entende, sempre em favor de sua imagem, para serem respeitadas.
Ao vencido cumpre tão somente observá-las, e, quando o forte poder é de um
império mundial, a observância cabe ao mundo inteiro.
No entanto, a causa que motiva a
resistência pacífica e a resistência terrorista é decididamente idêntica. E, como
dizíamos acima, quem dita as regras e formula os conceitos é o que manda, razão
pela qual a definição de terrorismo no mundo atual é diferenciada, dependendo de
quem a conceitua. Ninguém melhor do que Noam Chomsky em seu livro Poder e
Terrorismo, ao analisar a atuação de seu país, para dizê-lo:
“...quando alguém pratica o terrorismo
contra nós ou contra nossos aliados, isso é terrorismo, mas quando nós ou
nossos aliados o praticamos contra outros, talvez um terrorismo muito pior,
isso não é terrorismo, é antiterrorismo ou guerra justa.”
Seria o terrorismo uma mentira? Mais
que isso, é mazela completa e acabada. O engano ou enganação está na
conceituação dada identicamente a todos os atos terroristas, menos, é claro, os
praticados pelos poderosos de ocasião. São, sem diferenciação, colocados no
mesmo saco, seja o terrorismo de estado, o meramente gratuito de loucura, o da
propaganda, o da defesa ou revide, o da resistência. Todos, evidentemente,
serão condenáveis pelas consequências que provocam em morte e destruição. Não
acreditamos no terrorismo ético, nem tampouco na guerra ética, qualquer guerra,
embora doutrinas militares respeitáveis defendam certos conflitos como tal. Não,
aqui somos radicais: guerra e terrorismo são, pela própria natureza,
execráveis. São contra o homem, matam e destroem, as mais das vezes inocentes
que nada têm a ver com as causas que os provocaram.
Mas, mesmo com essa condenação à brutal
violência de sua ação, há que diferenciar um terrorismo do outro, numa escala
crescente de atenuantes, do extremadamente grave, para o grave, descendo ao
quase justificável. Nesse último grau há até o efetivamente justificável, quando
exercido por um grupo em defesa de sua pátria, rechaçando o ataque injusto, ou
resistindo ao domínio imposto pela força.
Se um país ataca o outro, é claro que,
até pelas leis internacionais, o atacado tem o direito e o dever de contra-atacar.
E a guerra justa. E o terrorismo? Da mesma forma. Como o povo agredido é o mais
fraco, não tem como fazer frente ao agressor poderoso, restando-lhe contra-atacar
em ações pequenas e surpreendentes, a única arma de que dispõe, como
resistência ao domínio de outrem, por evidente desigualdade bélica com o mais
forte. Não seria esta uma ação justa? Os poderosos evidentemente dirão que não,
pois são eles que ditam as regras, e decretam a sua moral peculiar, no sentido de
que todos os países em guerra têm que lutar leal e abertamente com as mesmas
armas. Quem não as tem, abaixa a cabeça e engole a afronta.
Casos e mais casos há para exemplificar
o terrorismo “justo”. O IRA na Irlanda, que quer se ver livre do jugo britânico,
chama a atenção do mundo para a opressão que sofre, plantando bombas e matando ingleses,
com o fim de enfraquecê-los.
Gandhi fez outro tanto com o Império
Britânico, resistindo e rebelando-se contra o abusado domínio. Só que de
maneira pacífica, ao desnortear o explorador com uma arma muito mais poderosa,
a de colocar a nu, para conhecimento do mundo, o ridículo de sua prepotência. A
partir daí é que o grande império deixou de sê-lo.
Também o ETA, na Espanha, que quer a
separação do país Basco, com língua e cultura próprias, faz o terrorismo da
propaganda, tomando públicas internacionalmente as justas aspirações de
independência.
Os MAQUIS, na França, chamados de
resistência francesa, admirados pelos aliados na Segunda Guerra Mundial,
quantos atos terroristas não praticaram contra os alemães invasores e quantas
vítimas inocentes não tiveram as vidas ceifadas?
O mesmo se diga dos palestinos, que
pretendem há muito a criação de um estado independente e praticam o terrorismo
contra Israel, inclusive com a aberração dos homens-bomba, suicidas jovens. Não
conseguem ver realizado o mesmo sonho que seus vizinhos israelenses fundaram em
1948, hoje o pujante estado de Israel, em razão de que este agora não o
permite, alegando problema de segurança nacional. Claro está que a alegação é falsa,
de vez que as terras palestinas são invadidas pela população israelense e o
povo palestino sofre opressão armada de Israel para que sinta o quão poderoso é
o vizinho.
O curioso é que, de uns tempos para cá,
o povo judeu mudou de posição. Antes da guerra, para disseminar a bandeira do
sionismo na Europa, com o intuito de convencer o mundo de que tinha direito à
criação de um estado próprio, muitos moços de então, que, posteriormente, já
maduros ocuparam altos postos no governo do estado de Israel, praticaram atos
de terrorismo, jogando bombas em prédios de cidades europeias. Nesse caso o
terrorismo, de justificável, então, tornou-se agora condenável por impor, pela
força, a vontade israelense e não apenas propagá-la.
É o que observa Luiz Alberto Moniz
Bandeira em sua recente obra, Formação do Império Americano:
“Contudo, quando as grandes potências
desprezam a força do Direito e Impõem o direito da força, os povos mais fracos,
oprimidos, são levados a recorrer ao terrorismo, como ferramenta de luta, no
processo de insurgência. Foi através do terrorismo que os judeus inviabilizaram,
em 1946/1947, a continuidade do domínio da Grã-Bretanha sobre a Palestina.”
Poder-se-ia comparar o da resistência
com os verdadeiros terrorismos, os catastróficos, os gratuitamente malignos como
os praticados pela Inquisição, os abjetos atos de extermínio humano, do
holocausto de Hitler, o doméstico de Reza Pahlevi, no Irã, as matanças
políticas de Stálin, a desumana colonização belga no Congo? Evidente que não,
principalmente se levarmos em conta, acrescentando à lista, o verdadeiro cataclismo que foi o maior ato de terrorismo praticado na história: a bomba atômica em
Hiroshima e Nagasaki. Os vencedores sem mácula da guerra afirmam ter sido a
ação necessária para acabar de vez com o conflito. Mentira descarada. A guerra
já estava ganha, o Japão apenas pedia que seu povo não fosse humilhado
assinando rendição incondicional. Ao pleito não foram dados ouvidos, o que mais
ainda humilhou os derrotados. Os homens japoneses estavam na guerra e a
população das duas cidades era composta apenas de mulheres, crianças e velhos. Mesmo
sabendo disso, os Estados Unidos lançaram as bombas, matando milhares e
milhares de seres humanos indefesos e deixando queimados para o resto dos dias
outros tantos. Não se tem notícia na história de ato tão execravelmente
desumano. E não foi absolutamente gratuito. O motivo, bastante torpe, foi o de
mostrar ao mundo, ao fim da guerra, que o grande império nascera, e que seu
poder, dessa forma demonstrado, era atômico e enormemente destruidor, como
jamais imaginado. A humanidade que abaixasse a cabeça em respeito, cientificada
de que qualquer deslize altivo, contrário aos interesses de Tio Sam, arcaria
com reprimenda igual.
Para ilustrar a diferença entre o
terrorismo de todo condenável e o de resistência justificável, será válido lembrar
a história da Israel bíblica, protagonizada por um de seus maiores heróis,
David. Israel enfrentava os Filisteus, que, em maior número, contavam ainda com
o gigante Golias, imbatível nas armas e que valia por si só dezenas de
soldados. Já aí começa o terror do mais forte, que hoje seria representado
pelas bombas, os jatos de caça, os porta-aviões e outros armamentos letais. Israel,
apavorado, mesmo assim segue para enfrentar o inimigo, com os guerreiros e
armas de praxe. Eis, senão, quando surge um menino com uma funda, hoje
representada pelas bombas caseiras, e com ela lança uma pedra certeira na testa
do enorme Golias, pondo-o morto por terra. Todo mundo se encanta com a
história, admirando a coragem e a destreza de David. Para os Filisteus, entretanto,
o herói provavelmente não passava de reles e atrevido terrorista.
Não mudou muito a visão no mundo atual.
Os Estados Unidos humilham os povos árabes, tomando a riqueza de seu petróleo,
invadindo e destruindo o que encontram pela frente, querendo impor sua falsa
democracia, e ficam depois indignadíssimos com o atentado ao Pentágono e às
torres de Nova York. Mesma reação ofendida do Império Britânico: descomunal
ousadia! E evidente que não há desculpa para o ato em si, mormente quando
provocou a morte de muitos inocentes. Por isso terrível e condenável. Mas há
que atentar para o fato de que, aos terroristas, para mostrarem resistência, não
lhes restava alternativa para atingir seu desiderato: chamar a atenção do mundo
e deixar seu inimigo humilhado, inseguro e apavorado. O almejado resultado foi mais
do que satisfatório. Além do que, nada disso teria acontecido, eis que perfeitamente
evitável, se não tivesse havido as inúmeras e covardes agressões do império americano
no Oriente Médio.
É o caso típico da arma do medo, como
afirma Benjamin R. Barber no livro O Império do Medo:
“O medo é a única arma do terrorismo,
mas o medo é uma arma muito mais potente contra os que vivem num clima de
esperança e prosperidade do que contra os que vivem num mundo de desespero, sem
nada a perder.”
Nenhuma nação suporta por muito tempo e
impunemente a humilhação, o saque, a exploração e a opressão de seu povo.
O terrorismo, pois,
pelo que causa, é indubitavelmente mazela. Será antes, porém, mentira, ao ser
batizado com outros nomes, para escondê-lo e desculpá-lo quando praticado pelos
poderosos. E igualmente mentira será se definido enganosamente como tal, quando
unicamente exercido como última trincheira de justa resistência.
O Esfolamento de Marsias
(Ticiano: pintor italiano)
Referência:
MOOG, Gilberto. Terrorismo. In:
__________. Desutopias: mentiras e mazelas da cultura ocidental. Rio de
janeiro, RJ: Nova Razão Cultural, 2007. p. 99-110.
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