Ninguém em sã consciência passe em frente ao ente lírico: ele está propenso a matar o que quer que apresente vida, a pretexto de que é um “gênio” ou “Deus”, tendo poder de vida ou morte sobre as criaturas. Aliás, para cada loucura que empreende, o falante parafraseia o enunciado divino a constar no Gênesis: “Viu que aquilo era bom”! E o pior: depois de pôr fim à vida em tudo o quanto havia em casa, agora põe-se a expor em perigo os passantes na rua e um incauto que lhe cortou a palavra num contato pelo rádio.
Shakespeare, para o ente lírico, mostrava-se, à altura de seus estudos, ininteligível no idioma inglês, assim como a mosca há pouco esmagada contra a vidraça passara a subsistir em um outro idioma, aos vivos não inteiramente decifrável: “Como moscas para meninos devassos, somos nós para os deuses; / Eles nos matam por esporte” (“Rei Lear”).
É de se presumir que o falante sofra de um problema de desconexão com a realidade, tornando-se fantasioso e narcisista. Talvez seja um (ou uma) rebelde sem causa (rs), à procura de intimidade ou de alguém que lhe dê ouvidos e lhe rompa o evidente e asfixiante isolamento.
A propósito, o toque mencionado no derradeiro verso do poema diz muito sobre o desejo de conexão, capaz de romper o estado de alienação do(a) presumível adolescente – um problema que, vez por outra, explode em casos de violência nas escolas daqui e de alhures: um dia sim e outro sim, um guri entre em sala de aula e tira a vida a muitos que ali se encontram!
J.A.R. – H.C.
Carol Ann Duffy
(n. 1955)
Education for Leisure
Today I am going to kill something. Anything.
I have had enough of being ignored and today
I am going to play God. It is an ordinary day,
a sort of grey with boredom stirring in the
streets.
I squash a fly against the window with my thumb.
We did that at school. Shakespeare. It was in
another language and now the fly is in another
language.
I breathe out talent on the glass to write my name.
I am a genius. I could be anything at all, with
half
the chance. But today I am going to change the world.
Something’s world. The cat avoids me. The cat
knows I am a genius, and has hidden itself.
I pour the goldfish down the bog. I pull the chain.
I see that it is good. The budgie is panicking.
Once a fortnight, I walk the two miles into town
for signing on. They don’t appreciate my autograph.
There is nothing left to kill. I dial the radio
and tell the man he’s talking to a superstar.
He cuts me off. I get our bread-knife and go out.
The pavements glitter suddenly. I touch your arm.
Periquito Azul
(Clare McCartney: artista australiana)
Educação para o Tempo Livre
Hoje, vou matar algo. Não importa o quê.
Estou farto de ser ignorado e, hoje,
vou brincar de ser Deus. É um dia qualquer,
com céu acinzentado e o tédio a invadir as ruas.
Esmago uma mosca contra a janela com o polegar.
Fazíamo-lo na escola. Shakespeare. Era outro
idioma e, agora, a mosca está em outro idioma.
Expiro talento no vidro para escrever meu nome.
Sou um gênio. Poderia ser qualquer coisa, com chances
à metade. Mas, hoje, vou mudar o mundo.
O mundo de algo. O gato me evita. O gato,
sabendo que sou um gênio, escondeu-se.
Verto o peixe dourado na retrete e puxo a descarga.
Vejo o quanto é bom. O periquito está em pânico.
Uma vez por quinzena, caminho duas milhas até a
cidade
para subscrever subsídios. Não apreciam o meu
autógrafo.
Já não há mais nada a matar. Sintonizo o rádio
e digo ao homem que está a falar com um superstar.
Corta-me a palavra. Pego nossa faca de cortar pão e
saio.
As calçadas brilham de repente. Toco em seu braço.
Referência:
DUFFY, Carol Ann. Education for leisure. In: DRAPER, Dave; SUTCLIFFE,
Chris; PILGRIM, Imelda; THOMAS, Peter (Eds.). Carol Ann Duffy and Simon
Armitage: working with the literature. Anthology for AQA-A-2004-6.
Consultant Peter Buckroyd. First publication. Oxford, EN: Heinemann, 2004. p.
38.
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