O poeta uruguaio ainda ouve percutir as
vozes de seus genitores − não se sabe se já falecidos fática ou alegoricamente
− na manhã dos seus dias, nesta lembrança de um momento da infância
caracterizado como uma “viagem pelos ossos”, a testemunhar, inclusive, o
passamento de qualquer estado pueril na mente do próprio ente lírico.
Trata-se de recobrar a memória ainda
presente nos ossos – “genealógicos e fiéis” – de doces e celestíssimos momentos
idos e vividos, quando se é criança e se recebe toda a atenção dos pais, numa
autêntica lucubração sobre os efeitos irreversíveis da passagem do tempo, resultando
numa poesia submersa em nostálgico e brumoso plasma.
J.A.R. – H.C.
Roberto Ibáñez
(1907-1978)
Viaje por los huesos
Ahora viajo de
incógnito por el haz de mis huesos.
Por planicies
unánimes de horizontes ilesos.
Entre blancuras
solas,
iah, qué música
inerte!
Oigo en noche lejana
de cedrón y amapolas
el beso original que fundó
tanta muerte.
En estos huesos
puros, de terrestre destino,
bajo intemperies
lácteas, mi mañana adivino.
Y en sus solas
blancuras
de apariencia
esteparia,
reconocer no puedo
mis cenizas futuras,
mi austera calavera,
puntual y solitaria.
Pero ahora en mis
huesos, genealógicos, fieles,
un suave ayer recobro
de memorables mieles.
Con una luz antigua
de absorta primavera,
ese candor profundo
todavía atestigua
la niñez celestísima,
la sonrisa primera.
Huesos donde mi
muerte infantil reposaba,
por un tímido ruego
contenida su aljaba.
Desde el ampo
risueño,
aún mí madre me mira.
Ya, con mentón
vencido, no calla hasta en el sueño.
Ya, con semblante
alegre, se levanta y respira.
¡Ay huesos, huesos
míos, de entornada memoria,
que abro con una
clara lágrima expiatoria!
Tal en una cisterna
de dócil resonancia,
en los átomos tibios
oigo la voz paterna,
como en aquel domingo
flamante de la infancia.
O livro de histórias
infantis
(Sophie G. Anderson:
pintora anglo-francesa)
Viagem pelos ossos
Agora viajo incógnito
pelo feixe de meus ossos.
Por planícies
unânimes de horizontes ilesos.
Entre ermas
brancuras,
ah, que música
inerte!
Ouço, na noite
distante de verbenas e papoulas,
o beijo original que fundou
tanta morte.
Nestes ossos puros,
de terrestre destino,
sob intempéries
lácteas, minha manhã adivinho.
E em suas ermas
brancuras
de aparência
estepária,
reconhecer não posso
minhas cinzas futuras,
meu crânio austero,
pontual e solitário.
Mas agora em meus
ossos, genealógicos, fiéis,
um suave ontem
recobro de memoráveis méis.
Com uma luz antiga
de absorta primavera,
esse candor profundo ainda
testemunha
a infância
celestíssima, o sorriso primeiro.
Ossos onde minha
morte infantil repousava,
contida a sua aljava
por um tímido apelo.
Em meio à alvura
resplendente e risonha,
minha mãe ainda me
observa.
Já, com o mento
vencido, não se cala até no sonho.
Já, com o semblante
alegre, se levanta e respira.
Ai ossos, ossos meus,
de semicerrada memória,
que abro com uma
clara lágrima expiatória!
Tal qual numa
cisterna
de dócil ressonância,
nos átomos tépidos
ouço a voz paterna,
como naquele domingo
fulgente da infância.
Referência:
IBÁÑEZ, Roberto. Viaje por los huesos.
In: Asir: revista de literatura. Montevideo, UY. n. 38, set. 1958, p.
78-79. Disponível neste endereço. Acesso em: 14 out.
2020.
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