Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 18 de outubro de 2020

Roberto Ibáñez - Viagem pelos Ossos

O poeta uruguaio ainda ouve percutir as vozes de seus genitores − não se sabe se já falecidos fática ou alegoricamente − na manhã dos seus dias, nesta lembrança de um momento da infância caracterizado como uma “viagem pelos ossos”, a testemunhar, inclusive, o passamento de qualquer estado pueril na mente do próprio ente lírico.

Trata-se de recobrar a memória ainda presente nos ossos – “genealógicos e fiéis” – de doces e celestíssimos momentos idos e vividos, quando se é criança e se recebe toda a atenção dos pais, numa autêntica lucubração sobre os efeitos irreversíveis da passagem do tempo, resultando numa poesia submersa em nostálgico e brumoso plasma.

J.A.R. – H.C.

Roberto Ibáñez
(1907-1978)

Viaje por los huesos

Ahora viajo de incógnito por el haz de mis huesos.
Por planicies unánimes de horizontes ilesos.
Entre blancuras solas,
iah, qué música inerte!
Oigo en noche lejana de cedrón y amapolas
el beso original que fundó tanta muerte.

En estos huesos puros, de terrestre destino,
bajo intemperies lácteas, mi mañana adivino.
Y en sus solas blancuras
de apariencia esteparia,
reconocer no puedo mis cenizas futuras,
mi austera calavera, puntual y solitaria.

Pero ahora en mis huesos, genealógicos, fieles,
un suave ayer recobro de memorables mieles.
Con una luz antigua
de absorta primavera,
ese candor profundo todavía atestigua
la niñez celestísima, la sonrisa primera.

Huesos donde mi muerte infantil reposaba,
por un tímido ruego contenida su aljaba.
Desde el ampo risueño,
aún mí madre me mira.
Ya, con mentón vencido, no calla hasta en el sueño.
Ya, con semblante alegre, se levanta y respira.
¡Ay huesos, huesos míos, de entornada memoria,
que abro con una clara lágrima expiatoria!
Tal en una cisterna
de dócil resonancia,
en los átomos tibios oigo la voz paterna,
como en aquel domingo flamante de la infancia.

O livro de histórias infantis
(Sophie G. Anderson: pintora anglo-francesa)

Viagem pelos ossos

Agora viajo incógnito pelo feixe de meus ossos.
Por planícies unânimes de horizontes ilesos.
Entre ermas brancuras,
ah, que música inerte!
Ouço, na noite distante de verbenas e papoulas,
o beijo original que fundou tanta morte.

Nestes ossos puros, de terrestre destino,
sob intempéries lácteas, minha manhã adivinho.
E em suas ermas brancuras
de aparência estepária,
reconhecer não posso minhas cinzas futuras,
meu crânio austero, pontual e solitário.

Mas agora em meus ossos, genealógicos, fiéis,
um suave ontem recobro de memoráveis méis.
Com uma luz antiga
de absorta primavera,
esse candor profundo ainda testemunha
a infância celestíssima, o sorriso primeiro.

Ossos onde minha morte infantil repousava,
contida a sua aljava por um tímido apelo.
Em meio à alvura resplendente e risonha,
minha mãe ainda me observa.
Já, com o mento vencido, não se cala até no sonho.
Já, com o semblante alegre, se levanta e respira.
Ai ossos, ossos meus, de semicerrada memória,
que abro com uma clara lágrima expiatória!
Tal qual numa cisterna
de dócil ressonância,
nos átomos tépidos ouço a voz paterna,
como naquele domingo fulgente da infância.

Referência:

IBÁÑEZ, Roberto. Viaje por los huesos. In: Asir: revista de literatura. Montevideo, UY. n. 38, set. 1958, p. 78-79. Disponível neste endereço. Acesso em: 14 out. 2020.

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