Neste que é um dos mais expressivos escólios
do Tao-Te King, observa-se alguma correlação com as palavras de Cristo, em
especial com as presentes em Marcos 9:35, nas quais se assenta a ideia de que “se
alguém quiser ser o primeiro, que seja o último e servo de todos”.
Nas duas versões ao português, abaixo
transcritas, tal ideia corresponderia ao terceiro tesouro – (iii) a recusa de liderar,
de ser o primeiro no mundo ou, ainda, a modéstia ou humildade, sendo os outros
dois (i) o amor, a bondade ou a compaixão e (ii) a sobriedade, suficiência, frugalidade
ou moderação.
No seu jogo de opostos, afirma Lao-Tzu
que a compaixão leva à bravura, a moderação à generosidade e a modéstia à
capacidade de governar. Bravura ou valentia sem compaixão pode-se ver naqueles
que se autointitulam “heróis” ou “semideuses”, a intimidar as pessoas por
nenhuma outra razão além da de tornar manifesto o poder que detêm. Generosidade
sem moderação leva a um desperdício de recursos sem sentido, com o que se
incorre em prodigalidade vulgar e impudente. De resto, a imodéstia é o pior que
se pode encontrar em um governante, porque se alguém se julga “iluminado” para
governar o mundo, não poupará esforços para alcançar tal intento, afastando-se,
sem pejo, da ética ou do agir correto!
J.A.R. – H.C.
Lao-Tzu
(~601 a.C. – 531
a.C.)
LXVII
O meu Tao é
grande − é o que todos dizem −
mas, de algum modo, é
inútil.
E é justamente por
ser grande que ele é inútil.
Se fosse útil,
há muito teria ficado
pequeno.
Tenho três tesouros
que aprecio e
preservo.
O primeiro chama-se
amor,
o segundo,
sobriedade,
e o terceiro é a
recusa de liderar o mundo.
Pelo amor, podemos
ser corajosos.
Pela sobriedade,
podemos ser generosos.
Por não ousar estar à
frente do mundo,
podemos ser a cabeça
dos homens de talento.
Querer ser corajoso
sem amor,
querer ser generoso
sem sobriedade,
querer liderar sem
ficar para trás;
isso é a morte.
Se para combater
tivermos amor,
sairemos vencedores.
Se usarmos amor na
defesa,
seremos invencíveis.
Aquele a quem o Céu
quer salvar,
Ele o protege pelo
amor.
Nota Suplementar por
Richard Wilhelm: O início desta seção não está inteiramente claro no texto, e por
tradição assim foi considerado. Em algumas edições falta a palavra Tao,
sem que isso interfira no significado. É significativa a interpretação
preferida por alguns: “Todos dizem que o meu ensinamento é absolutamente
inútil”. O contexto corrobora a nossa interpretação. (LAO-TZU, 2006, p. 198-199)
Um navio holandês
chegando ao ancoradouro
(Willem van de Velde:
pintor holandês)
67: As Três Coisas
Preciosas
Dizem os homens que
eu sou grande,
Como se eu fosse algo
especial.
Grande só é quem nada
se importa
Com sua grandeza.
Quem deseja ser
grande perante os outros,
Esse é pequeno.
Três palavras me são
sagradas:
A primeira é bondade,
A segunda,
suficiência,
A terceira, modéstia.
A bondade dá força,
A suficiência alarga
a estreiteza,
A modéstia faz do
homem um veículo
Para a atuação das
forças eternas.
Hoje em dia não é
assim.
O homem não conhece
mais bondade,
E, ainda assim, se
julga forte.
Não tem mais
suficiência.
Só reclama seus
direitos;
Ninguém sabe ser
modesto,
Mas só pensa em
sucesso.
E isto conduz à
ruína.
Quem é realmente bom
Vence na luta
Porque é invencível.
Quando o inimigo
avança,
Esse homem é amparado
pelo céu.
Explicação filosófica
por Huberto Rohden: Bondade, suficiência e modéstia representam o carisma do homem cósmico.
E dessa trindade cósmica brotam todos os atos externos do homem realmente
grande. Quem age em nome do seu ego humano é pequeno. Quem é agido pelo Eu
cósmico, esse é grande. O grande homem assume atitude de um eterno aprendiz e nunca
se considera mestre de ninguém. (LAO-TSÉ, 2009, p. 160)
Referências:
LAO-TZU. LXVII. Tradução de Margit
Martincic. In: __________. Tao-Te King: texto e comentário de Richard
Wilhelm. Tradução de Margit Martincic. São Paulo, SP: Pensamento, 2006. p. 106.
LAO-TSÉ. 67: As três coisas preciosas.
Tradução de Huberto Rohden. Tao Te Ching: o livro que revela Deus.
Tradução e notas de Huberto Rohden. Texto integral. 4. ed. 1. reimp. São Paulo,
SP: Martin Claret, 2009. p. 159-160. (Coleção ‘A Obra-prima de Cada Autor’; n.
136)
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