Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Lao-Tzu - Tao-Te King - LXVII

Neste que é um dos mais expressivos escólios do Tao-Te King, observa-se alguma correlação com as palavras de Cristo, em especial com as presentes em Marcos 9:35, nas quais se assenta a ideia de que “se alguém quiser ser o primeiro, que seja o último e servo de todos”.

Nas duas versões ao português, abaixo transcritas, tal ideia corresponderia ao terceiro tesouro – (iii) a recusa de liderar, de ser o primeiro no mundo ou, ainda, a modéstia ou humildade, sendo os outros dois (i) o amor, a bondade ou a compaixão e (ii) a sobriedade, suficiência, frugalidade ou moderação.

No seu jogo de opostos, afirma Lao-Tzu que a compaixão leva à bravura, a moderação à generosidade e a modéstia à capacidade de governar. Bravura ou valentia sem compaixão pode-se ver naqueles que se autointitulam “heróis” ou “semideuses”, a intimidar as pessoas por nenhuma outra razão além da de tornar manifesto o poder que detêm. Generosidade sem moderação leva a um desperdício de recursos sem sentido, com o que se incorre em prodigalidade vulgar e impudente. De resto, a imodéstia é o pior que se pode encontrar em um governante, porque se alguém se julga “iluminado” para governar o mundo, não poupará esforços para alcançar tal intento, afastando-se, sem pejo, da ética ou do agir correto!

J.A.R. – H.C.

Lao-Tzu
(~601 a.C. – 531 a.C.)


LXVII

O meu Tao é grande − é o que todos dizem −
mas, de algum modo, é inútil.
E é justamente por ser grande que ele é inútil.
Se fosse útil,
há muito teria ficado pequeno.
Tenho três tesouros
que aprecio e preservo.
O primeiro chama-se amor,
o segundo, sobriedade,
e o terceiro é a recusa de liderar o mundo.
Pelo amor, podemos ser corajosos.
Pela sobriedade, podemos ser generosos.
Por não ousar estar à frente do mundo,
podemos ser a cabeça dos homens de talento.
Querer ser corajoso sem amor,
querer ser generoso sem sobriedade,
querer liderar sem ficar para trás;
isso é a morte.
Se para combater tivermos amor,
sairemos vencedores.
Se usarmos amor na defesa,
seremos invencíveis.
Aquele a quem o Céu quer salvar,
Ele o protege pelo amor.

Nota Suplementar por Richard Wilhelm: O início desta seção não está inteiramente claro no texto, e por tradição assim foi considerado. Em algumas edições falta a palavra Tao, sem que isso interfira no significado. É significativa a interpretação preferida por alguns: “Todos dizem que o meu ensinamento é absolutamente inútil”. O contexto corrobora a nossa interpretação. (LAO-TZU, 2006, p. 198-199)

Um navio holandês chegando ao ancoradouro
(Willem van de Velde: pintor holandês)

67: As Três Coisas Preciosas

Dizem os homens que eu sou grande, 
Como se eu fosse algo especial.
Grande só é quem nada se importa
Com sua grandeza.
Quem deseja ser grande perante os outros,
Esse é pequeno.
Três palavras me são sagradas:
A primeira é bondade,
A segunda, suficiência,
A terceira, modéstia.
A bondade dá força,
A suficiência alarga a estreiteza,
A modéstia faz do homem um veículo
Para a atuação das forças eternas.
Hoje em dia não é assim.
O homem não conhece mais bondade,
E, ainda assim, se julga forte.
Não tem mais suficiência.
Só reclama seus direitos;
Ninguém sabe ser modesto,
Mas só pensa em sucesso.
E isto conduz à ruína.
Quem é realmente bom
Vence na luta
Porque é invencível.
Quando o inimigo avança,
Esse homem é amparado pelo céu.

Explicação filosófica por Huberto Rohden: Bondade, suficiência e modéstia representam o carisma do homem cósmico. E dessa trindade cósmica brotam todos os atos externos do homem realmente grande. Quem age em nome do seu ego humano é pequeno. Quem é agido pelo Eu cósmico, esse é grande. O grande homem assume atitude de um eterno aprendiz e nunca se considera mestre de ninguém. (LAO-TSÉ, 2009, p. 160)

Referências:

LAO-TZU. LXVII. Tradução de Margit Martincic. In: __________. Tao-Te King: texto e comentário de Richard Wilhelm. Tradução de Margit Martincic. São Paulo, SP: Pensamento, 2006. p. 106.

LAO-TSÉ. 67: As três coisas preciosas. Tradução de Huberto Rohden. Tao Te Ching: o livro que revela Deus. Tradução e notas de Huberto Rohden. Texto integral. 4. ed. 1. reimp. São Paulo, SP: Martin Claret, 2009. p. 159-160. (Coleção ‘A Obra-prima de Cada Autor’; n. 136)

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