Correntes específicas da filosofia e da
religião mortificam-se pela pouca segurança e efemeridade da experiência de
viver, um sopro intermitente em cujo transcurso suportam-se angústias, desesperos,
sofrimentos, tristezas, dores, mais ingentes ainda quando resultantes das
carências impostas pela pobreza, para tudo findar no mais absoluto olvido, como
se jamais se houvesse caminhado sobre a terra.
Mas o poeta assegura que é o amor, mais
que qualquer outra experiência que se tenha, a inspiração maior a permitir que
se perceba o encanto de viver, esse não querer mais que bem querer (Camões), esse
infinito apreço ainda que transitivo (Vinicius de Moraes), perante o qual a
própria morte pode ser um ato a manifestá-lo: “não há amor maior que doar a
vida pelo irmão” (João 15:13).
J.A.R. – H.C.
Guilherme de Almeida
(1890-1969)
Esta Vida
Um sábio me dizia:
“Esta existência
não vale a angústia
de viver. A ciência,
se fôssemos eternos,
num transporte
de desespero,
inventaria a morte!
Uma célula orgânica
aparece
no infinito do tempo:
e vibra, e cresce,
e se desdobra, e
estala num segundo...
Homem, eis o que
somos neste mundo!”
Falou-me assim o
sábio e eu comecei a ver,
dentro da própria
morte, o encanto de morrer.
Um monge me dizia: “Ó
mocidade,
és relâmpago, ao pé
da eternidade!
Pensa: o tempo anda
sempre e não repousa...
Esta vida não vale
grande cousa:
− uma mulher que
chora, um berço a um canto,
o riso às vezes,
quase sempre o pranto...
Depois, o mundo, a
luta que intimida...
Quatro círios acesos
− eis a vida!”
Isto me disse o monge
e eu continuei a ver,
dentro da própria
morte, o encanto de morrer.
Um pobre me dizia:
“Para o pobre,
a vida é o pão e o
andrajo vil que o cobre.
Deus?... Eu não creio
nessa fantasia!
Deus me dá fome e sede
cada dia,
mas nunca me deu pão
nem me deu água...
Nunca! Deu-me a
vergonha, a infâmia, a mágoa
de andar, de porta em
porta, esfarrapado...
Deu-me esta vida: um
pão envenenado!”
Disse-me isto o
mendigo e eu continuei a ver,
dentro da própria
morte, o encanto de morrer.
Uma mulher me disse:
“Vem comigo!
Fecha os olhos e
sonha, meu amigo!
Sonha um lar, uma
doce companheira
que queiras muito e
que também te queira...
Um telhado... Um
penacho de fumaça...
Cortinas muito
brancas na vidraça...
Um canário que canta
na gaiola...
− Que linda a vida lá
por dentro rola!”
Pela primeira vez, eu
comecei a ver,
dentro da própria
vida, o encanto de viver!
Autorretrato com
Isabella Brandt,
sua primeira esposa,
em Honeysuckle Bower
(Peter Paul Rubens:
pintor flamengo)
Referência:
ALMEIDA, Guilherme de. Esta vida. In:
__________. Messidor. São Paulo, SP: Casa Editora ‘O Livro’, 1919. p.
153-154.
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