Quase que o associei à faceta heteronímica do poeta lusitano Fernando
Pessoa (1888-1935) ao apreender o derradeiro dístico deste poema de Quintana: o
vate é de si mesmo diverso! Nele pulsaria um Deus por nascer – e então já a
outro grande escritor se poderia concatenar tal ideia, nomeadamente ao francês
Victor Hugo (1802-1885), hábil em inter-relacionar, em muitos de seus poemas, o plano
das divindades e a esfera das musas do Parnaso.
Mas a qual outra melhor conexão se poderia estender a noção de que “o
poeta canta a si mesmo” do que ao proverbial poema “Canção de Mim Mesmo”, do
norte-americano Walt Whitman (1819-1892), um congregado, como já se disse, de
elementos biográficos e de prédicas, além de pensamentos, sentimentos e estados
psicológicos permeados de poesia?!
E o poema propriamente dito de Quintana? Deixo-o à apreciação do internauta,
em particular no que respeita à metáfora de que o coração do poeta se
comportaria como uma biruta exposta a todos os ventos do universo,
permitindo-lhe capturar, num átimo roubado ao mar incessante do tempo, a sua
mais elusiva essência.
J.A.R. – H.C.
Mario Quintana
(1906-1994)
O poeta canta a si mesmo
O poeta canta a si
esmo
porque nele é que os olhos
das amadas
têm esse brilho a um
tempo inocente e perverso...
O poeta canta a si
mesmo
porque num seu único
verso
pende – lúcida,
amarga –
uma gota fugida a
esse mar incessante do tempo...
Porque o seu coração
é uma porta batendo
a todos os ventos do
universo.
Porque além de si
mesmo ele não sabe nada
ou que Deus por
nascer está tentando agora
ansiosamente respirar
neste seu pobre ritmo
disperso!
O poeta canta a si
mesmo
porque de si mesmo é
diverso.
Em: Esconderijos do Tempo (1980)
Veneza
(Oleg Shupliak:
pintor ucraniano)
Referência:
QUINTANA, Mario. O poeta canta a si
mesmo. In: __________. Quintana de
bolso: rua dos cataventos & outros poemas. Seleção de Sergio Faraco.
Porto Alegre, RS: L&PM, 2015. p. 119. (Coleção ‘L&PM Pocket’, v. 71)
❁
Nenhum comentário:
Postar um comentário