Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 9 de julho de 2020

Mario Quintana - O poeta canta a si mesmo

Quase que o associei à faceta heteronímica do poeta lusitano Fernando Pessoa (1888-1935) ao apreender o derradeiro dístico deste poema de Quintana: o vate é de si mesmo diverso! Nele pulsaria um Deus por nascer – e então já a outro grande escritor se poderia concatenar tal ideia, nomeadamente ao francês Victor Hugo (1802-1885), hábil em inter-relacionar, em muitos de seus poemas, o plano das divindades e a esfera das musas do Parnaso.

Mas a qual outra melhor conexão se poderia estender a noção de que “o poeta canta a si mesmo” do que ao proverbial poema “Canção de Mim Mesmo”, do norte-americano Walt Whitman (1819-1892), um congregado, como já se disse, de elementos biográficos e de prédicas, além de pensamentos, sentimentos e estados psicológicos permeados de poesia?!

E o poema propriamente dito de Quintana? Deixo-o à apreciação do internauta, em particular no que respeita à metáfora de que o coração do poeta se comportaria como uma biruta exposta a todos os ventos do universo, permitindo-lhe capturar, num átimo roubado ao mar incessante do tempo, a sua mais elusiva essência.

J.A.R. – H.C.

Mario Quintana
(1906-1994)

O poeta canta a si mesmo

O poeta canta a si esmo
porque nele é que os olhos das amadas
têm esse brilho a um tempo inocente e perverso...

O poeta canta a si mesmo
porque num seu único verso
pende – lúcida, amarga –
uma gota fugida a esse mar incessante do tempo...

Porque o seu coração é uma porta batendo
a todos os ventos do universo.

Porque além de si mesmo ele não sabe nada
ou que Deus por nascer está tentando agora
ansiosamente respirar
neste seu pobre ritmo disperso!

O poeta canta a si mesmo
porque de si mesmo é diverso.

Em: Esconderijos do Tempo (1980)

Veneza
(Oleg Shupliak: pintor ucraniano)

Referência:

QUINTANA, Mario. O poeta canta a si mesmo. In: __________. Quintana de bolso: rua dos cataventos & outros poemas. Seleção de Sergio Faraco. Porto Alegre, RS: L&PM, 2015. p. 119. (Coleção ‘L&PM Pocket’, v. 71)

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