Em argumentos sob a forma de versos, Segalen, por meio deste poema – inspirado
na lenda chinesa de Mou-Koung –, busca nos despertar para o intangível que se
incrusta nas coisas materiais, ideias que se inscrevem na realidade à volta, a
convolar as experiências mais imperativas, a exemplo do trabalho, em
interioridades que marcam nossas vidas, tornando-as mais significativas.
É que os vestígios que aqui deixamos, testemunhados em pedra, frutos de
uma relação de amor, evolam sinfonias capazes de reavivar no inconsciente
coletivo – como fênix renascida das cinzas – o triunfo das coisas fugazes, a
exemplo das vozes que o próprio poeta retoma, quando afirma que elas vivem em sua
estela musical, mesmo tendo sido há muito expressas.
J.A.R. – H.C.
Victor Segalen
(1878-1919)
Pierre Musicale
Voici le lieu où ils
se reconnurent, les amants amoureux
de la flûte inégale;
Voici la table où ils
se réjouirent l’époux habile
et la fille enivrée ;
Voici l’estrade où
ils s’aimaient par les tons essentiels,
Au travers du métal
des cloches, de la peau dure
des silex tintants,
À travers les cheveux
du luth, dans la rumeur
des tambours, sur le
dos du tigre de bois creux,
Parmi l’enchantement
des paons au cri clair, des grues
à l’appel bref, du
phénix au parler inouï.
Voici le faîte du
palais sonnant que Mou-Koung, le père,
dressa pour eux comme
un socle,
Et voilà, – d’un
envol plus suave que phénix, oiselles
et paons, – voilà
l’espace où ils ont pris essor.
*
Qu’on me touche :
toutes ces voix vivente
dans ma pierre
musicale.
A ascensão da fênix
(Karen Tarlton:
pintora norte-americana)
Pedra Musical
Eis o lugar onde se
reconheceram os amantes
apaixonados pela
flauta desigual;
Eis a mesa onde se
alegraram o esposo hábil
e a moça inebriada;
Eis a cama onde eles
se amavam pelos tons essenciais,
Através do metal dos
sinos, da pele dura dos
sílex tilintantes,
Através dos cabelos
do alaúde, no rumor dos tambores,
nas costas do tigre
de madeira oca,
Entre o encantamento
dos pavões de grito claro,
das gruas de chamado
breve, da fênix de fala inaudita.
Eis o topo do palácio
sonante que Mu-Kung (*),
o pai, ergueu para
eles como um pedestal,
E eis – alçando-se mais
suaves que fênix, aves fêmeas
e pavões – eis o
espaço onde eles voaram.
*
Toquem-me: todas
essas vozes vivem
na minha pedra
musical.
Nota da Tradutora:
(*) Mu-Kung foi um imperador: casou a
filha com um flautista que tocava tão maravilhosamente bem que encantava os
pássaros, e conta a lenda que, um dia, o casal foi embora do palácio, voando
como uma fênix.
Referência:
SEGALEN, Victor. Pierre musicale /
Pedra musical. Tradução de Renata Cordeiro. In: CORDEIRO, Renata (Concepção e
tradução). Pequena antologia de poemas
franceses: de François Villon a Fernando Pessoa. São Paulo, SP: Landy, 2002. Em francês: p.
112-113; em português: p. 87.
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