Para um mundo em desconcerto, conflagrado pela guerra, Cecília dedicou
alguns de seus mais expressivos poemas, a exemplo do que ora se apresenta, formulado
em anáforas que tencionam abarcar a universalidade do conflito e o mar de
sangue e morte que devastou o mundo por anos a fio, sem contar a destruição
promovida sobre a natureza e o patrimônio tangível e intangível de cidades
inteiras.
É que os homens, ontem como hoje, desprezando as razões do coração,
costumam cair em degradações morais, tudo em razão do apelo às necessidades
imediatas – ou até nem isso –, suscitando cizânias capazes de se expandir a países
inteiros, os quais, dessa forma, engalfinham-se em conflagrações armadas que,
paradoxalmente, exaurem as suas próprias obras. E então, amainada a discórdia,
põem-se a reconstruir o que dilapidaram – demandando mais e mais recursos que,
obviamente, não saem do nada –, pois como se costuma dizer, não há almoço de graça!
J.A.R. – H.C.
Cecília Meireles
(1901-1964)
Guerra
Tanto é o sangue
que os rios desistem
de seu ritmo,
e o oceano delira
e rejeita as espumas
vermelhas.
Tanto é o sangue
que até a lua se
levanta horrível,
e erra nos lugares
serenos,
sonâmbula de auréolas
rubras,
com o fogo do inferno
em suas madeixas.
Tanta é a morte
que nem os rostos se
conhecem, lado a lado,
e os pedaços de corpo
estão por ali como tábuas sem uso.
Oh, os dedos com
alianças perdidos na lama...
Os olhos que já não
pestanejam com a poeira...
As bocas de recados
perdidos...
O coração dado aos
vermes, dentro dos densos uniformes...
Tanta é a morte
que só as almas formariam
colunas,
as almas
desprendidas... – e alcançariam as estrelas.
E as máquinas de
entranhas abertas,
e os cadáveres ainda
armados,
e a terra com suas
flores ardendo,
e os rios espavoridos
como tigres, com suas máculas,
e este mar desvairado
de incêndios e náufragos,
e a lua alucinada de
seu testemunho,
e nós e vós, imunes,
chorando, apenas,
sobre fotografias,
– tudo é um natural
armar e desarmar de andaimes
entre tempos
vagarosos,
sonhando
arquiteturas.
Revolta do Cairo: 1810
(Anne-Louis Girodet: pintor
francês)
Referência:
MEIRELES, Cecília. Guerra. In:
__________. Obra poética. Rio de
Janeiro, RJ: Nova Aguilar, 1987. p. 277.
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