Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 21 de julho de 2020

Cecília Meireles - Guerra

Para um mundo em desconcerto, conflagrado pela guerra, Cecília dedicou alguns de seus mais expressivos poemas, a exemplo do que ora se apresenta, formulado em anáforas que tencionam abarcar a universalidade do conflito e o mar de sangue e morte que devastou o mundo por anos a fio, sem contar a destruição promovida sobre a natureza e o patrimônio tangível e intangível de cidades inteiras. 

É que os homens, ontem como hoje, desprezando as razões do coração, costumam cair em degradações morais, tudo em razão do apelo às necessidades imediatas – ou até nem isso –, suscitando cizânias capazes de se expandir a países inteiros, os quais, dessa forma, engalfinham-se em conflagrações armadas que, paradoxalmente, exaurem as suas próprias obras. E então, amainada a discórdia, põem-se a reconstruir o que dilapidaram – demandando mais e mais recursos que, obviamente, não saem do nada –, pois como se costuma dizer, não há almoço de graça!

J.A.R. – H.C.

Cecília Meireles
(1901-1964)

Guerra

Tanto é o sangue
que os rios desistem de seu ritmo,
e o oceano delira
e rejeita as espumas vermelhas.
Tanto é o sangue
que até a lua se levanta horrível,
e erra nos lugares serenos,
sonâmbula de auréolas rubras,
com o fogo do inferno em suas madeixas.

Tanta é a morte
que nem os rostos se conhecem, lado a lado,
e os pedaços de corpo estão por ali como tábuas sem uso.

Oh, os dedos com alianças perdidos na lama...
Os olhos que já não pestanejam com a poeira...
As bocas de recados perdidos...
O coração dado aos vermes, dentro dos densos uniformes...

Tanta é a morte
que só as almas formariam colunas,
as almas desprendidas... – e alcançariam as estrelas.

E as máquinas de entranhas abertas,
e os cadáveres ainda armados,
e a terra com suas flores ardendo,
e os rios espavoridos como tigres, com suas máculas,
e este mar desvairado de incêndios e náufragos,
e a lua alucinada de seu testemunho,
e nós e vós, imunes,
chorando, apenas, sobre fotografias,
– tudo é um natural armar e desarmar de andaimes
entre tempos vagarosos,
sonhando arquiteturas.

Revolta do Cairo: 1810
(Anne-Louis Girodet: pintor francês)

Referência:

MEIRELES, Cecília. Guerra. In: __________. Obra poética. Rio de Janeiro, RJ: Nova Aguilar, 1987. p. 277.

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