Num poema em que se presume a poetisa a falar com o próprio umbigo, uma
parte reprova a outra por destruir aquilo que seria o resultado de um processo
criativo, capaz de levar a um estado de perturbação babélica, sem amparo para
os seus próprios desejos autênticos de felicidade, substituídos
clandestinamente pela realidade decalcada de sons originados por aparelhos à
volta.
Mas há certo tom de vertigem nessa convulsão perturbadora que a leva a
tentar restabelecer os rumos de sua vida, uma embarcação meio sem rumo, daí o
motivo por que se ordena atar-se “ao velame com as próprias mãos”, para dar-lhe
rota segura. O leitor poderá concluir por si mesmo se a poetisa logrou ou não
sucesso em tal empreitada, caso se disponha a investigar sobre a biografia da
autora.
J.A.R. – H.C.
Ana Cristina Cesar
(1952-1983)
Por que escreve e rasga a fogo
Por que escreve e
rasga a fogo
o que te dei e
arrisca
meu nome na roleta?
Por que esta
exposição à luz?
Espero que me liguem
A algum pedaço de
terra.
Aqui no fundo do
horto florestal
ouço coisas que nunca
ouvi,
pássaros que gemem.
Aguço o ouvido.
Peço para mim mesma
que ligue, ligue, ligue
os aparelhos surdos
que só fazem som e tomam
o lugar clandestino
da felicidade.
Preciso me atar ao
velame com as próprias mãos.
Sopra fúria.
Ao vento
(Vladimir Volosov:
artista russo)
Referência:
CESAR, Ana Cristina. Por que escreve e
rasga a fogo. In: __________. Ana Cristina Cesar. Organização, apresentação e
notas de Armando Freitas Filho; ensaio de Silviano Santiago. Rio de Janeiro,
RJ: Nova Fronteira, 2004. p. 92. (Coleção “Novas Seletas”: Coordenação de Laura
Sandroni)
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