Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 1 de julho de 2020

Delmira Agustini - Plegária

Esta oração, rogativa, súplica, deprecação da poetisa uruguaia, como outras tantas já aqui postadas de autoras diversas, manifesta a sua contrariedade com as regras de decoro e de restrições impostas à mulher à época em que viveu, em especial com relação aos silogismos do amor, mais explicitamente ao amor sensual, já que se dirige, evocativamente, a Eros – o deus do amor erótico.

Delmira associa a mulher de então a uma “estátua”, fria e impotente “crisálida de pedra”, elemento consequente de um estado de passividade que lhe fora imposto, a revelar uma inautêntica e pretensa imperturbabilidade, mas que de fato denota uma pulsão de morte, da qual somente pela ação da seta dourada de Eros poderá se regenerar, reavivando a paixão que tanta vida e sentido traz à experiência humana, digo melhor, à experiência das mulheres.

Uma observação: o texto original de Delmira apresenta os versos “altos, claros, extáticos / pararrayos de cúpulas morales” dessa forma, com “extáticos” grafado com “x”, o que denota um estado de êxtase e não de imobilidade, como seria o caso se o vocábulo estivesse grafado com “s”, quer no idioma espanhol quer no português. A tradução verte a palavra entre as línguas para “estáticos” – o que, a rigor, implicaria inexatidão –, mas não em confronto ao real sentido da metáfora empregada por Delmira: a mulher não estaria em êxtase sendo um para-raios de cúpulas morais, pois como se advoga de início é que ela seria uma “estátua”, o que, como tal, a levaria a pairar na mais absoluta imobilidade!

J.A.R. – H.C.

Delmira Agustini
(1886-1914)

Plegaria

– Eros: ¿acaso no sentiste nunca
piedad de las estatuas?
Se dirían crisálidas de piedra
de yo no sé qué formidable raza
en una eterna espera inenarrable.
Los cráteres dormidos de sus bocas
dan la ceniza negra del Silencio;
mana de las columnas de sus hombros
la mortaja copiosa de la Calma,
y fluye de sus órbitas la noche;
víctimas del Futuro o del Misterio,
en capullos terribles  y magníficos
esperan a la Vida o a la Muerte.
Eros: ¿acaso no sentiste nunca
piedad de las estatuas? –

Piedad para las vidas
que no doran a fuego tus bonanzas,
ni riegan o desgajan tus tormentas;
piedad para los cuerpos revestidos
del armiño solemne de la Calma,
y las frentes en luz que sobrellevan
grandes lirios marmóreos de pureza,
pesados y glaciales como témpanos;
piedad para las manos enguantadas
de hielo, que no arrancan
los frutos deleitosos de la Carne
ni las flores fantásticas del alma;
piedad para los ojos que aletean
espirituales párpados:
escamas de misterio,
negros telones de visiones rosas...
¡Nunca ven nada por mirar tan lejos!
Piedad para las pulcras cabelleras
– místicas aureolas –
peinadas como lagos
que nunca airea el abanico negro,
negro y enorme de la tempestad;
piedad para los ínclitos espíritus
tallados en diamante;
altos, claros, extáticos
pararrayos de cúpulas morales;
piedad para los labios como engarces
celestes, donde fulge
 invisible la perla de la Hostia;
– labios que nunca fueron,
que no apresaron nunca
un vampiro de fuego
con más sed y más hambre que un abismo –.
Piedad para los sexos sacrosantos
que acoraza de una
hoja de viña astral la Castidad;
piedad para las plantas imantadas
de eternidad que arrastran
por el eterno azur
las sandalias quemantes de sus llagas;
piedad, piedad, piedad
para todas las vidas que defiende
de tus maravillosas intemperies
el mirador enhiesto del Orgullo:

¡Apúntales tus soles o tus rayos!

Eros: ¿acaso no sentiste nunca
piedad de las estatuas?...

O combate do amor e da castidade
(Gherardo di Giovanni del Fora: pintor italiano)

Plegária

– Eros: por acaso nunca sentiste
piedade das estátuas?
Dir-se-iam crisálidas de pedra
de sei lá que formidável raça
numa eterna espera inenarrável.
As crateras dormidas das suas bocas
dão a cinza negra do Silêncio;
mana das colunas dos seus ombros
a mortalha copiosa da Calma,
e flui das suas órbitas a noite;
vítimas do Futuro ou do Mistério,
em capulhos terríveis e magníficos
esperam a Vida ou a Morte.
Eros: por acaso nunca sentiste
piedade das estátuas? –

Piedade para as vidas
que não douram a fogo tuas bonanças,
nem regam ou desgarram tuas tormentas;
piedade para os corpos revestidos
do arminho solene da Calma,
e das frentes em luz que sobrelevam
grandes lírios marmóreos de pureza,
pesados e glaciais como geleiras (*);
piedade para as mãos enluvadas
de gelo, que não arrancam
os frutos deleitosos da Carne
nem as flores fantásticas da alma;
piedade para os olhos que agitam
espirituais pálpebras:
escamas de mistério,
negros telões de visões rosas...
Nunca veem nada por mirar tão longe!
Piedade para as pulcras cabeleiras
– místicas auréolas –
penteadas como lagos
que nunca areja o abanico negro,
negro e enorme da tempestade;
piedade para os ínclitos espíritos
talhados em diamante;
altos, claros, estáticos
para-raios de cúpulas morais;
piedade para os lábios como engastes
celestes onde fulge
invisível a pérola da Hóstia;
– lábios que nunca foram,
que não apresaram nunca
um vampiro de fogo
com mais sede e fome do que um abismo –.
Piedade para os sexos sacrossantos
que encouraça de uma
folha de vinha astral a Castidade;
piedade para as plantas imantadas
de eternidade que arrastam
pelo eterno azul
as sandálias queimantes de suas chagas;
piedade, piedade, piedade
para todas as vidas que defende
de tuas maravilhosas intempéries
o mirador erguido do Orgulho:

Aponta-lhes teus sóis ou teus raios!

Eros: por acaso nunca sentiste
piedade das estátuas?...

Nota da Tradutora:

(*) Nota da tradutora: No original “témpanos”. Como em português não há nenhuma palavra específica que signifique bloco de gelo, optou-se por utilizar “geleira”, que apesar de não ser um bloco, é uma extensa massa de gelo. Portanto, a relação é feita pela conexão com o gelo. (A palavra “iceberg” logo ficou fora de todo cogitação, dada a evidente cacofonia e intromissão de outra língua.)

Referências:

Em Espanhol

AGUSTINI, Delmira. Plegaria. In: __________. Los cálices vacíos: poesías. Montevideo, UY: O. M. Bertani Editor, 1913. p. 42-44. Disponível neste endereço. Acesso em: 5 mai. 2020.

Em Português

AGUSTINI, Delmira. Plegária. Tradução de Jessica de Figueiredo Machado. In: MACHADO, Jessica de Figueiredo. Os cálices vazios: tradução e erotismo em Delmira Agustini. Dissertação de Mestrado. Niterói, RJ: Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), 2017. p. 83-34. Disponível neste endereço. Acesso em: 5 mai. 2020.

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