Esta oração, rogativa, súplica, deprecação da poetisa uruguaia, como
outras tantas já aqui postadas de autoras diversas, manifesta a sua contrariedade
com as regras de decoro e de restrições impostas à mulher à época em que viveu,
em especial com relação aos silogismos do amor, mais explicitamente ao amor sensual,
já que se dirige, evocativamente, a Eros – o deus do amor erótico.
Delmira associa a mulher de então a uma “estátua”, fria e impotente “crisálida
de pedra”, elemento consequente de um estado de passividade que lhe fora
imposto, a revelar uma inautêntica e pretensa imperturbabilidade, mas que de
fato denota uma pulsão de morte, da qual somente pela ação da seta dourada de
Eros poderá se regenerar, reavivando a paixão que tanta vida e sentido traz à
experiência humana, digo melhor, à experiência das mulheres.
Uma observação: o texto original de Delmira apresenta os versos “altos,
claros, extáticos / pararrayos de cúpulas morales” dessa forma, com “extáticos”
grafado com “x”, o que denota um estado de êxtase e não de imobilidade, como
seria o caso se o vocábulo estivesse grafado com “s”, quer no idioma espanhol
quer no português. A tradução verte a palavra entre as línguas para “estáticos”
– o que, a rigor, implicaria inexatidão –, mas não em confronto ao real sentido
da metáfora empregada por Delmira: a mulher não estaria em êxtase sendo um
para-raios de cúpulas morais, pois como se advoga de início é que ela seria uma “estátua”,
o que, como tal, a levaria a pairar na mais absoluta imobilidade!
J.A.R. – H.C.
Delmira Agustini
(1886-1914)
Plegaria
– Eros: ¿acaso no
sentiste nunca
piedad de las
estatuas?
Se dirían crisálidas
de piedra
de yo no sé qué
formidable raza
en una eterna espera
inenarrable.
Los cráteres dormidos
de sus bocas
dan la ceniza negra
del Silencio;
mana de las columnas
de sus hombros
la mortaja copiosa de
la Calma,
y fluye de sus
órbitas la noche;
víctimas del Futuro o
del Misterio,
en capullos
terribles y magníficos
esperan a la Vida o a
la Muerte.
Eros: ¿acaso no
sentiste nunca
piedad de las
estatuas? –
Piedad para las vidas
que no doran a fuego
tus bonanzas,
ni riegan o desgajan
tus tormentas;
piedad para los
cuerpos revestidos
del armiño solemne de
la Calma,
y las frentes en luz
que sobrellevan
grandes lirios
marmóreos de pureza,
pesados y glaciales
como témpanos;
piedad para las manos
enguantadas
de hielo, que no
arrancan
los frutos deleitosos
de la Carne
ni las flores
fantásticas del alma;
piedad para los ojos
que aletean
espirituales
párpados:
escamas de misterio,
negros telones de
visiones rosas...
¡Nunca ven nada por
mirar tan lejos!
Piedad para las
pulcras cabelleras
– místicas aureolas –
peinadas como lagos
que nunca airea el
abanico negro,
negro y enorme de la
tempestad;
piedad para los
ínclitos espíritus
tallados en diamante;
altos, claros,
extáticos
pararrayos de cúpulas
morales;
piedad para los
labios como engarces
celestes, donde fulge
invisible la perla de la Hostia;
– labios que nunca
fueron,
que no apresaron
nunca
un vampiro de fuego
con más sed y más
hambre que un abismo –.
Piedad para los sexos
sacrosantos
que acoraza de una
hoja de viña astral
la Castidad;
piedad para las plantas
imantadas
de eternidad que
arrastran
por el eterno azur
las sandalias
quemantes de sus llagas;
piedad, piedad,
piedad
para todas las vidas
que defiende
de tus maravillosas
intemperies
el mirador enhiesto
del Orgullo:
¡Apúntales tus soles o
tus rayos!
Eros: ¿acaso no
sentiste nunca
piedad de las
estatuas?...
O combate do amor e da castidade
(Gherardo di Giovanni
del Fora: pintor italiano)
Plegária
– Eros: por acaso
nunca sentiste
piedade das estátuas?
Dir-se-iam crisálidas
de pedra
de sei lá que
formidável raça
numa eterna espera
inenarrável.
As crateras dormidas
das suas bocas
dão a cinza negra do
Silêncio;
mana das colunas dos
seus ombros
a mortalha copiosa da
Calma,
e flui das suas
órbitas a noite;
vítimas do Futuro ou
do Mistério,
em capulhos terríveis
e magníficos
esperam a Vida ou a
Morte.
Eros: por acaso nunca
sentiste
piedade das estátuas?
–
Piedade para as vidas
que não douram a fogo
tuas bonanças,
nem regam ou
desgarram tuas tormentas;
piedade para os
corpos revestidos
do arminho solene da
Calma,
e das frentes em luz
que sobrelevam
grandes lírios
marmóreos de pureza,
pesados e glaciais
como geleiras (*);
piedade para as mãos
enluvadas
de gelo, que não
arrancam
os frutos deleitosos
da Carne
nem as flores
fantásticas da alma;
piedade para os olhos
que agitam
espirituais
pálpebras:
escamas de mistério,
negros telões de visões
rosas...
Nunca veem nada por
mirar tão longe!
Piedade para as
pulcras cabeleiras
– místicas auréolas –
penteadas como lagos
que nunca areja o
abanico negro,
negro e enorme da
tempestade;
piedade para os
ínclitos espíritos
talhados em diamante;
altos, claros, estáticos
para-raios de cúpulas
morais;
piedade para os
lábios como engastes
celestes onde fulge
invisível a pérola da
Hóstia;
– lábios que nunca
foram,
que não apresaram
nunca
um vampiro de fogo
com mais sede e fome
do que um abismo –.
Piedade para os sexos
sacrossantos
que encouraça de uma
folha de vinha astral
a Castidade;
piedade para as
plantas imantadas
de eternidade que
arrastam
pelo eterno azul
as sandálias
queimantes de suas chagas;
piedade, piedade,
piedade
para todas as vidas
que defende
de tuas maravilhosas
intempéries
o mirador erguido do
Orgulho:
Aponta-lhes teus sóis
ou teus raios!
Eros: por acaso nunca
sentiste
piedade das estátuas?...
Nota da Tradutora:
(*) Nota da tradutora: No original
“témpanos”. Como em português não há nenhuma palavra específica que signifique
bloco de gelo, optou-se por utilizar “geleira”, que apesar de não ser um bloco,
é uma extensa massa de gelo. Portanto, a relação é feita pela conexão com o
gelo. (A palavra “iceberg” logo ficou fora de todo cogitação, dada a evidente
cacofonia e intromissão de outra língua.)
Referências:
Em Espanhol
AGUSTINI, Delmira. Plegaria. In:
__________. Los cálices vacíos: poesías.
Montevideo, UY: O. M. Bertani Editor, 1913. p. 42-44. Disponível neste endereço. Acesso em: 5 mai. 2020.
Em Português
AGUSTINI, Delmira. Plegária. Tradução
de Jessica de Figueiredo Machado. In: MACHADO, Jessica de Figueiredo. Os cálices vazios: tradução e erotismo
em Delmira Agustini. Dissertação de Mestrado. Niterói, RJ: Faculdade de Letras
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), 2017. p. 83-34. Disponível
neste endereço. Acesso em: 5 mai. 2020.
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