O poeta de Itabira – a cidade natal que lhe restou como uma simples fotografia
na parede – tece longas considerações sobre a arte do poema, em específico,
acerca do modo como as formalidades extrínsecas dos cânones da rima e da
métrica restringem a plenitude expressiva.
Nestas memórias e instantâneos poéticos do Brasil, enfocados, sobretudo,
em Minas Gerais – embora não só –, Drummond faz pulsar toda a sua lucidez e desencanto
sobre o que é ser brasileiro. Aliás, em vários de seus poemas, o autor mineiro
enfatiza a ideia de que é preciso “deixar de ser brasileiro” para se poder
vislumbrar o quanto de nossas mazelas é consequência de um agir humano carente
de ética e de solidariedade com o homem comum do povo, tanto mais quando se
coloca o nacionalismo “a negar todas as virtudes”!
J.A.R. – H.C.
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
Consideração do Poema
Não rimarei a palavra
sono
com a
incorrespondente palavra outono.
Rimarei com a palavra
carne
ou qualquer outra,
que todas me convêm
As palavras não
nascem amarradas,
elas saltam, se
beijam, se dissolvem,
no céu livre por
vezes um desenho,
são puras, largas,
autênticas, indevassáveis.
Uma pedra no meio do
caminho
ou apenas um rastro,
não importa.
Estes poetas são
meus. De todo o orgulho,
de toda a precisão se
incorporaram
ao fatal meu lado
esquerdo. Furto a Vinicius
sua mais límpida
elegia. Bebo em Murilo.
Que Neruda me dê sua
gravata
chamejante. Me perco
em Apollinaire.
Adeus, Maiakovski.
São todos meus
irmãos, não são jornais
nem deslizar de
lancha entre camélias:
é toda a minha vida
que joguei.
Estes poemas são
meus. É minha terra
e é ainda mais do que
ela. E qualquer homem
ao meio-dia em
qualquer praça. É a lanterna
em qualquer
estalagem, se ainda as há.
– Há mortos? há
mercados? há doenças?
É tudo meu. Ser
explosivo, sem fronteiras,
por que falsa
mesquinhez me rasgaria?
Que se depositem os
beijos na face branca,
nas principiante rugas.
O beijo ainda é um
sinal, perdido embora,
da ausência de
comércio,
boiando em tempos
sujos.
Poeta do finito e da matéria,
cantor sem piedade,
sim, sem frágeis lágrimas,
boca tão seca, mas
ardor tão casto.
Dar tudo pela
presença dos longínquos,
sentir que há ecos,
poucos, mas cristal,
não rocha apenas,
peixes circulando
sob o navio que leva
esta mensagem,
e aves de bico longo
conferindo
sua derrota, e dois
ou três faróis,
últimos! esperança do
mar negro.
Essa viagem é mortal,
e começá-la.
Saber que há tudo. E
mover-se em meio
a milhões e milhões
de formas raras,
secretas, duras. Eis
ai meu canto.
Ele é tão baixo que
sequer o escuta
ouvido rente ao chão.
Mas é tão alto
que as pedras o
absorvem. Está na mesa
aberta em livros,
cartas e remédios.
Na parede
infiltrou-se. O bonde, a rua,
o uniforme de colégio
se transformam,
são ondas de carinho
te envolvendo.
Como fugir ao mínimo
objeto
ou recusar-se ao
grande? Os temas passam,
eu sei que passarão,
mas tu resistes,
e cresces como fogo,
como casa,
como orvalho entre
dedos,
na grama, que
repousam.
Já agora te sigo a
toda parte,
e te desejo e te
perco, estou completo,
me destino, me faço
tão sublime,
tão natural e cheio
de segredos,
tão firme, tão
fiel... Tal uma lâmina,
o povo, meu poema, te
atravessa.
Praça da Liberdade (BH)
(Wagner Bottaro:
pintor brasileiro)
Referência:
ANDRADE, Carlos Drummond de. Consideração
do poema. In: __________. A rosa do povo.
44. ed. Prefácio de Affonso Romano de Sant’Anna. Rio de Janeiro, RJ: Record,
2011. p. 21-23.
❁
Nenhum comentário:
Postar um comentário