Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 18 de março de 2019

Carlos Drummond de Andrade - Consideração do Poema

O poeta de Itabira – a cidade natal que lhe restou como uma simples fotografia na parede – tece longas considerações sobre a arte do poema, em específico, acerca do modo como as formalidades extrínsecas dos cânones da rima e da métrica restringem a plenitude expressiva.

Nestas memórias e instantâneos poéticos do Brasil, enfocados, sobretudo, em Minas Gerais – embora não só –, Drummond faz pulsar toda a sua lucidez e desencanto sobre o que é ser brasileiro. Aliás, em vários de seus poemas, o autor mineiro enfatiza a ideia de que é preciso “deixar de ser brasileiro” para se poder vislumbrar o quanto de nossas mazelas é consequência de um agir humano carente de ética e de solidariedade com o homem comum do povo, tanto mais quando se coloca o nacionalismo “a negar todas as virtudes”!

J.A.R. – H.C.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Consideração do Poema

Não rimarei a palavra sono
com a incorrespondente palavra outono.
Rimarei com a palavra carne
ou qualquer outra, que todas me convêm
As palavras não nascem amarradas,
elas saltam, se beijam, se dissolvem,
no céu livre por vezes um desenho,
são puras, largas, autênticas, indevassáveis.

Uma pedra no meio do caminho
ou apenas um rastro, não importa.
Estes poetas são meus. De todo o orgulho,
de toda a precisão se incorporaram
ao fatal meu lado esquerdo. Furto a Vinicius
sua mais límpida elegia. Bebo em Murilo.
Que Neruda me dê sua gravata
chamejante. Me perco em Apollinaire.
Adeus, Maiakovski.
São todos meus irmãos, não são jornais
nem deslizar de lancha entre camélias:
é toda a minha vida que joguei.

Estes poemas são meus. É minha terra
e é ainda mais do que ela. E qualquer homem
ao meio-dia em qualquer praça. É a lanterna
em qualquer estalagem, se ainda as há.
– Há mortos? há mercados? há doenças?
É tudo meu. Ser explosivo, sem fronteiras,
por que falsa mesquinhez me rasgaria?
Que se depositem os beijos na face branca,
nas principiante rugas.
O beijo ainda é um sinal, perdido embora,
da ausência de comércio,
boiando em tempos sujos.

 Poeta do finito e da matéria,
cantor sem piedade, sim, sem frágeis lágrimas,
boca tão seca, mas ardor tão casto.
Dar tudo pela presença dos longínquos,
sentir que há ecos, poucos, mas cristal,
não rocha apenas, peixes circulando
sob o navio que leva esta mensagem,
e aves de bico longo conferindo
sua derrota, e dois ou três faróis,
últimos! esperança do mar negro.
Essa viagem é mortal, e começá-la.
Saber que há tudo. E mover-se em meio
a milhões e milhões de formas raras,
secretas, duras. Eis ai meu canto.

Ele é tão baixo que sequer o escuta
ouvido rente ao chão. Mas é tão alto
que as pedras o absorvem. Está na mesa
aberta em livros, cartas e remédios.
Na parede infiltrou-se. O bonde, a rua,
o uniforme de colégio se transformam,
são ondas de carinho te envolvendo.

Como fugir ao mínimo objeto
ou recusar-se ao grande? Os temas passam,
eu sei que passarão, mas tu resistes,
e cresces como fogo, como casa,
como orvalho entre dedos,
na grama, que repousam.

Já agora te sigo a toda parte,
e te desejo e te perco, estou completo,
me destino, me faço tão sublime,
tão natural e cheio de segredos,
tão firme, tão fiel... Tal uma lâmina,
o povo, meu poema, te atravessa.

Praça da Liberdade (BH)
(Wagner Bottaro: pintor brasileiro)

Referência:

ANDRADE, Carlos Drummond de. Consideração do poema. In: __________. A rosa do povo. 44. ed. Prefácio de Affonso Romano de Sant’Anna. Rio de Janeiro, RJ: Record, 2011. p. 21-23.

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