Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 21 de março de 2019

António Ramos Rosa - A pobreza de certas palavras

Há certo desconcerto do leitor quando, em primeira leitura, chega ao final do poema abaixo: certas palavras que morrem, mais pobres, seriam obsessivas e persistem, contrariamente ao que, em senso comum, se poderia supor – se mortas estão, não seriam obsessivas, tampouco persistentes...

Mas o fato é que o poeta alude ao tema da morte, quando finados estamos – e as nossas palavras, nosso discurso, idem –, mas elas reverberam no vácuo que deixamos, quer físico quer – e principalmente – espiritual, eis que nossas palavras podem ser ainda contundentes aos ouvidos de nossos pares vivos.

Ou não: a pedra atirada no lago gera círculos concêntricos, mas não há o que impeça a superfície da água voltar ao seu anterior estado de placidez, vale dizer, o plano estático que mais se parece ao fenecimento das forças da natureza.

J.A.R. – H.C.

António Ramos Rosa
(1924-2013)

A pobreza de certas palavras

É para ouvires o som de um buraco,
certas palavras despidas, certas palavras pobres:
o som de um buraco.

O sopro que ouvires, não o ouves, não é o sopro da árvore.
Aqui esqueceu-se o peso das pedras.

Por isso outras palavras: as que sobram.
Não as que restam.
Não será um grito. Certas palavras, só.

A quebra muda, nem sequer produz um baque.
Eis o que elas produzem depois de ti:
o som de um buraco.

Entre nós: não o ouvido. Certas palavras mais pobres,
obsessivas, mortas.
Persistem. Morrem.

Em: “Nos seus Olhos de Silêncio” (1970)

A pequena leitora
(Konstantin Razumov: pintor russo)

Referência:

ROSA, António Ramos. A pobreza de certas palavras. In: MENÉRES, Maria Alberta; MELO E CASTRO, E. M. de (Orgs.). Antologia da novíssima poesia portuguesa. 3. ed. 1. vol. Lisboa, PT: Moraes Editores, 1971. p. 206. (‘Círculo de Poesia’; v. 46)

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