Um poema que se retrata como um ângelus às horas derradeiras de um
determinado dia do poeta uruguaio, ainda na fase inicial de sua prolífica obra.
Contudo, o que dele se extrai é o espasmo, ou melhor, a melancolia imputável a
uma vida dentro de um escritório, olhando as coisas lá fora, em contraste com o
que ocorre bem mais perto: ordens, telefonemas e campainhas.
Impõe-se, nada obstante, o comando de não chorar por tão “burocrático”
destino, pois as lágrimas são capazes de borrar as letras dos livros que se
produzem. Logo, se houver chances para emoções nesse mister, devem elas estar
delimitadas ao significante e significado do texto que tais obras comportam.
J.A.R. – H.C.
Mario Benedetti
(1920-2009)
Angelus
Quién me iba a decir
que el destino era esto.
Ver la lluvia a
través de letras invertidas,
un paredón con
manchas que parecen prohombres,
el techo de los
ómnibus brillantes como peces
y esa melancolía que
impregna las bocinas.
Aquí no hay cielo,
aquí no hay
horizonte.
Hay una mesa grande
para todos los brazos
y una silla que gira
cuando quiero escaparme.
Otro día se acaba y
el destino era esto.
Es raro que uno tenga
tiempo de verse triste:
siempre suena una
orden, un teléfono, un timbre,
y claro, está
prohibido llorar sobre los libros
Porque no queda bien
que la tinta se corra.
En: “Poemas de la Oficina” (1953-1956)
Velho escrevendo num livro
(Dirck van Baburen:
pintor holandês)
Ângelus
Quem iria me dizer
que o destino era isso.
Ver a chuva através
de letras invertidas,
um paredão com
manchas que simbolizam próceres,
o teto dos ônibus
brilhantes como peixes
e essa melancolia que
impregna as buzinas.
Aqui não há céu,
aqui não há
horizonte.
Há uma mesa grande
para todos os braços
e uma cadeira que
gira quando quero escapar.
Mais um dia se acaba
e o destino era isso.
É estranho que a
gente tenha tempo de se ver triste:
sempre toca uma
ordem, um telefone, uma campainha,
e claro, é proibido
chorar sobre os livros
porque não fica bem que
a tinta se borre.
Em: “Poemas do Escritório” (1953-1956)
Referência:
BENEDETTI, Mario. Angelus / Ângelus.
Tradução de Julio Luís Gehlen. In: __________. Antologia poética. Tradução de Julio Luís Gehlen. Edição bilíngue.
Rio de Janeiro, RJ: Record, 1988. Em espanhol: p. 246; em português: p. 247.
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