Talvez tenha suscitado um ‘insight’ ao poeta o fato de haver assistido
ao filme “Duas ou três coisas que eu sei dela” (1967), do francês Jean-Luc
Godard, levando-o a escrever este poema, digo melhor, soneto – “ela” que, tendo
tanto sofrido, tornou-se ainda mais bela aos olhos de Junqueira.
Se o poeta afirma que ela “naufragou”, caso adotemos o enredo do filme
de Godard, é porque sucumbiu à prostituição numa sociedade que, de uma forma ou
de outra, leva-a a se perder. E assim se consome como uma vela, sem qualquer
consolo, a enganar o companheiro, que, por sua vez, põe-se a flertar outras
garotas.
J.A.R. – H.C.
Ivan Junqueira
(1934-2014)
São duas ou três coisas
São duas ou três
coisas que eu sei dela,
e nada mais além de
seu perfume.
Sei que nas noites
ermas ela assume
esse ar de quem
flutua na janela,
como o duende fugaz
que em si resume
um tempo que a
ampulheta não revela:
o tempo além do tempo
que só nela
navega mais que o
peixe no cardume.
Sei que ela traz nos
olhos esse lume
de quem sofreu e a
dor tornou mais bela,
pois o naufrágio lhe
infundiu aquela
vertigem que do
alfanje é o próprio gume.
Sei que ela vive no
halo de uma vela
e queima sem consolo,
em minha cela.
Uma beldade no café
(Konstantin Razumov:
pintor russo)
Referência:
JUNQUEIRA, Ivan. São duas ou três
coisas. In: __________. O outro lado:
poemas (1998-2006). Rio de Janeiro, RJ: Record, 2007. p. 23.
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