Um amor crepuscular tomou conta do poeta. E por ser amor, como diria o
compositor Djavan, “invade e fim!”. Um amor maduro que nem se sabe se foi uma
dádiva divina ou se uma armadilha de Satã, pois, irrompendo tão tardiamente,
veio tumultuar a necessária calma do tino já estabelecido, como um verme a
desgastar as entranhas. Mas um amor obtido por merecimento, haja vista que
decorrente de “um secreto investimento em formas improváveis”.
Trata-se de um amor devotado a converter o “sagrado terror em
jubilação”. Poder-se-ia dizer, um amor que antepõe a destruição à criação, que
é fonte de vida e nos põe sempre a morrer. Eros e Thanatos são os mitos
pretéritos invocados pelo vate: “Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso
/ e talhado em penumbra sou e não sou, mas sou”.
Récita do poema por Paulo Autran
J.A.R. – H.C.
Campos de Flores
Deus me deu um amor no tempo de
madureza,
quando os frutos ou não são colhidos ou
sabem a verme.
Deus – ou foi talvez o Diabo – deu-me
este amor maduro,
e a um e outro agradeço, pois que tenho
um amor.
Pois que tenho um amor, volto aos mitos
pretéritos
e outros acrescento aos que amor já
criou.
Eis que eu mesmo me torno o mito mais
radioso
e talhado em penumbra sou e não sou,
mas sou.
Mas sou cada vez mais, eu que não me
sabia
e cansado de mim julgava que era o
mundo
um vácuo atormentado, um sistema de
erros.
Amanhecem de novo as antigas manhãs
que não vivi jamais, pois jamais me
sorriram.
Mas me sorriam sempre atrás de tua
sombra
imensa e contraída como letra no muro
e só hoje presente.
Deus me deu um amor porque o mereci.
De tantos que já tive ou tiveram em
mim,
o sumo se espremeu para fazer vinho
ou foi sangue, talvez, que se armou em
coágulo.
E o tempo que levou uma rosa indecisa
a tirar sua cor dessas chamas extintas
era o tempo mais justo. Era tempo de
terra.
Onde não há jardim, as flores nascem de
um
secreto investimento em formas
improváveis.
Hoje tenho um amor e me faço espaçoso
para arrecadar as alfaias de muitos
amantes desgovernados, no mundo, ou
triunfantes,
e ao vê-los amorosos e transidos em torno,
o sagrado terror converto em jubilação.
Seu grão de angústia amor já me oferece
na mão esquerda. Enquanto a outra
acaricia
os cabelos e a voz e o passo e a
arquitetura
e o mistério que além faz os seres
preciosos
à visão extasiada.
Mas, porque me tocou um amor
crepuscular,
há que amar diferente. De uma grave
paciência
ladrilhar minhas mãos. E talvez a
ironia
tenha dilacerado a melhor doação.
Há que amar e calar.
Para fora do tempo arrasto meus
despojos
e estou vivo na luz que baixa e me
confunde.
Cena interior com um casal de velhos
comendo ao lado de uma janela
(Frans van Mieris, o
mais velho: pintor holandês)
Referência:
ANDRADE, Carlos Drummond de. Campo de
flores. In: __________. Claro enigma.
Livro vira-vira 2. Rio de Janeiro, RJ: BestBolso, 2010. p. 49-50. (Seleção
Saraiva vira-vira: 2 livros em 1; publicado em conjunto com ‘A rosa do povo’).
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