Colocando-se imaginariamente na voz lírica que pertenceu a um dos
heterônimos de Fernando Pessoa – menos famoso, é certo, mas bem próximo ao
próprio temperamento do criador, tanto que lhe dizem “semi-heterônimo” –, Luiza
Jorge põe-se a descrever cena do poeta à mesa, questionando-se sobre a
identidade, como forma de perseguir a cura para a “seca da cisterna”,
revolvendo em palimpsestos reelaborados à exaustão a sua pródiga e prismática
matéria íntima.
Em meio às associações aos enfoques ortográficos e grafológicos da obra
de Pessoa, tem-se a intuição de que a poetisa esteve a contemplar a famosa pintura de
Almada Negreiros (1954) ao redigir o poema: afinal, quer-se levar o leitor a
entrever uma pintura – uma natureza-morta –, capaz de refletir as impressões
visuais vezes sem conta presentes nos escritos de Bernardo.
J.A.R. – H.C.
Luiza Neto Jorge
(1939-1989)
Natureza-Morta com Bernardo Soares
Esta mesa de mármore
mó absorvente onde
as folhas espadanam
põe-me na rota
dessoutro
bojo calipígio onde o
poeta
ele-mesmo copiava a
escrita.
Vagueia a paisagem,
irradiando-me;
embaciado sol me
localiza,
sou eu, é minha a
mesa,
meu o sossego, e mói.
Sobre o ringue sem patinadores,
cisterna seca à minha
frente,
poluídas tílias em
flor.
Ousarei invocar outro
terreiro,
o sol-a-sol do só, a
poluída vida,
os duplicados que o
poeta fez?
Plagiadas arcadas:
e o meu olhar margina
as águas, pródigas
águas
que redemoinham após
a seca.
Em: “A lume” (1989)
Outono às margens do lago
(Pashk Pervathi:
pintor albanês)
Elucidário:
Calipígio – Aquele(a) que tem belas nádegas.
Referência:
JORGE, Luiza Neto. Natureza-morta com
Bernardo Soares. In: COSTA E SILVA, Alberto da; BUENO, Alexei (Organização e
Introdução). Antologia da poesia portuguesa
contemporânea: um panorama. Rio de Janeiro, RJ: Lacerda Editores, 1999. p.
344.
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