Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Anna Akhmátova - Das “Elegias do Norte”: Terceira

Permeado por uma coragem trágica, a poetisa revela que lhe fizeram incorrer no maior de todos os riscos: perder a si mesma, muito silenciosamente no mundo, como se nada fosse, transformando a existência em nada mais do que um equívoco – ou talvez num drama shakespeariano elevado à enésima potência.

É a memória de um século conturbado que revolve na mente de Akhmátova, um século que tocou na mais contundente de todas as úlceras – a da desigualdade injusta entre os homens –, mas que não logrou curá-la. Um século que levou-a a envelhecer cem anos em apenas algumas décadas, reduzindo-a ao silêncio conturbado e exaltado, visível de todo modo nas palavras de seus versos.

J.A.R. – H.C.

P.s.: Uma observação talvez proveitosa para o tradutor brasileiro de Akhmátova, Lauro Machado Coelho: em todas as obras que possuo da autora, vertidas ao inglês, consta a elegia em comento como sendo a quinta e não a terceira – tal qual, de modo expedito, pode-se constatar no título do poema exibido no ‘link’ de onde extraí a versão em russo. Por igual, a elegia quarta traduzida na obra em referência às págs. 126-128, de fato, evidencia-se como sendo a sexta. O que terá ocorrido?


Anna Akhmátova
(1889-1966)

Пятая

Меня, как реку,
Суровая эпоха повернула.
Мне подменили жизнь. В другое русло,
Мимо другого потекла она,
И я своих не знаю берегов.
О, как я много зрелищ пропустила,
И занавес вздымался без меня
И так же падал. Сколько я друзей
Своих ни разу в жизни не встречала,
И сколько очертаний городов
Из глаз моих могли бы вызвать слезы,
А я один на свете город знаю
И ощупью его во сне найду.
И сколько я стихов не написала,
И тайный хор их бродит вкруг меня
И, может быть, еще когда-нибудь
Меня задушит...
Мне ведомы начала и концы,
И жизнь после конца, и что-то,
О чем теперь не надо вспоминать.
И женщина какая-то мое
Единственное место заняла,
Мое законнейшее имя носит,
Оставивши мне кличку, из которой
Я сделала, пожалуй, все, что можно.
Я не в свою, увы, могилу лягу.

Но иногда весенний шалый ветер,
Иль сочетанье слов в случайной книге,
Или улыбка чья-то вдруг потянут
Меня в несостоявшуюся жизнь.
В таком году произошло бы то-то,
А в этом - это: ездить, видеть, думать,
И вспоминать, и в новую любовь
Входить, как в зеркало, с тупым сознаньем
Измены и еще вчера не бывшей
Морщинкой...
Но если бы оттуда посмотрела
Я на свою теперешнюю жизнь,
Узнала бы я зависть наконец...
Но если бы оттуда посмотрела
Я на свою теперешнюю жизнь,
Узнала бы я зависть наконец

1945
Ленинград

As Margens do Marne
(Paul Cézzane: pintor francês)

Terceira

            Eu, como um rio,
fui desviada por estes duros tempos.
Deram-me uma vida interina. E ela pôs-se a fluir
num curso diferente, passando pela minha outra vida,
e eu já não reconhecia mais minhas próprias margens.
Oh, quantos espetáculos perdi,
quantas vezes o pano ergueu-se
e caiu sem mim. Quantos de meus amigos
nunca encontrei uma só vez em toda a minha vida,
e quantas paisagens de cidades
poderiam ter-me arrancado lágrimas dos olhos;
mas só conheço uma cidade neste mundo
embora nela fosse capaz de achar meu caminho até
      dormindo;
e quantos poemas nunca cheguei a escrever,
e seus refrãos misteriosos pairam à minha volta
e, talvez, de algum jeito, acabem por
me estrangular…
Estão claros, para mim, o começo e o fim,
e a vida depois do fim, e mais algumas coisas
de que não tenho de me lembrar por enquanto.
Uma outra mulher ocupou
o lugar especialmente reservado para mim
e usa o meu nome,
deixando para mim só o apelido, com o qual
fiz, provavelmente, tudo que havia para ser feito.

Não me deitarei, ai de mim, em meu próprio túmulo.
Mas, às vezes, o vento brincalhão da primavera,
ou certas combinações de palavras em um livro,
ou o sorriso de alguém suscita em mim,
de repente, essa vida que nunca aconteceu.
Neste ano, houve tais e tais coisas,
naquele ano, aquelas outras: viajar, ver, pensar
e lembrar, e entrar em um novo amor
como dentro de um espelho, com a leve consciência
da traição e de que, ontem, ainda não estava ali
aquela ruga.
……………………………………….
Mas se eu pudesse observar de fora
a pessoa que hoje sou,
aí sim, aprenderia finalmente o que é a inveja.

2/9/1945
Leningrado


Referências:

Ахматова, АннаМенякак реку... Disponível neste endereço. Acesso em: 23 jan. 2019.

AKHMÁTOVA, Anna. De “Elegias do norte”: terceira. Tradução de Lauro Machado Coelho. In: __________. Antologia poética. Seleção, tradução do russo, apresentação e notas de Lauro Machado Coelho. Porto Alegre, RS: L&PM, 2014. p. 125-126. (Coleção L&PM Pocket; v. 751).

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