Permeado por uma coragem trágica, a
poetisa revela que lhe fizeram incorrer no maior de todos os riscos: perder a
si mesma, muito silenciosamente no mundo, como se nada fosse, transformando a
existência em nada mais do que um equívoco – ou talvez num drama shakespeariano
elevado à enésima potência.
É a memória de um século conturbado que revolve na mente de Akhmátova, um século que tocou na mais contundente de todas as úlceras – a da desigualdade injusta entre os homens –, mas que não logrou curá-la. Um século que levou-a a envelhecer cem anos em apenas algumas décadas, reduzindo-a ao silêncio conturbado e exaltado, visível de todo modo nas palavras de seus versos.
J.A.R. – H.C.
P.s.: Uma observação talvez proveitosa para o tradutor brasileiro de Akhmátova, Lauro Machado Coelho: em todas as obras que possuo da autora, vertidas ao inglês, consta a elegia em comento como sendo a quinta e não a terceira – tal qual, de modo expedito, pode-se constatar no título do poema exibido no ‘link’ de onde extraí a versão em russo. Por igual, a elegia quarta traduzida na obra em referência às págs. 126-128, de fato, evidencia-se como sendo a sexta. O que terá ocorrido?
Terceira
Eu, como um rio,
fui desviada por estes duros tempos.
Deram-me uma vida interina. E ela
pôs-se a fluir
num curso diferente, passando pela
minha outra vida,
e eu já não reconhecia mais minhas
próprias margens.
Oh, quantos espetáculos perdi,
quantas vezes o pano ergueu-se
e caiu sem mim. Quantos de meus amigos
nunca encontrei uma só vez em toda a
minha vida,
e quantas paisagens de cidades
poderiam ter-me arrancado lágrimas dos
olhos;
mas só conheço uma cidade neste mundo
embora nela fosse capaz de achar meu
caminho até
dormindo;
e quantos poemas nunca cheguei a
escrever,
e seus refrãos misteriosos pairam à
minha volta
e, talvez, de algum jeito, acabem por
me estrangular…
Estão claros, para mim, o começo e o
fim,
e a vida depois do fim, e mais algumas
coisas
de que não tenho de me lembrar por
enquanto.
Uma outra mulher ocupou
o lugar especialmente reservado para
mim
e usa o meu nome,
deixando para mim só o apelido, com o
qual
fiz, provavelmente, tudo que havia para
ser feito.
Não me deitarei, ai de mim, em meu
próprio túmulo.
Mas, às vezes, o vento brincalhão da
primavera,
ou certas combinações de palavras em um
livro,
ou o sorriso de alguém suscita em mim,
de repente, essa vida que nunca
aconteceu.
Neste ano, houve tais e tais coisas,
naquele ano, aquelas outras: viajar,
ver, pensar
e lembrar, e entrar em um novo amor
como dentro de um espelho, com a leve
consciência
da traição e de que, ontem, ainda não
estava ali
aquela ruga.
……………………………………….
Mas se eu pudesse observar de fora
a pessoa que hoje sou,
aí sim, aprenderia finalmente o que é a
inveja.
2/9/1945
Leningrado
Referências:
Ахматова, Анна. Меня, как реку... Disponível neste endereço. Acesso em: 23 jan. 2019.
AKHMÁTOVA, Anna. De “Elegias
do norte”: terceira. Tradução de Lauro Machado Coelho. In: __________. Antologia poética. Seleção,
tradução do russo, apresentação e notas de Lauro Machado Coelho. Porto Alegre,
RS: L&PM, 2014. p. 125-126. (Coleção L&PM Pocket; v. 751).
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