Neste excerto de um ensaio intitulado “New York”, Edmund Wilson
metaforiza a nossa necessidade por literatura como o efeito de se contrair uma
doença e o corpo arregimentar as suas forças para combatê-la, lançando mão dos
leucócitos com o objetivo de expulsar ou neutralizar as bactérias nocivas que
causam a inflamação.
Wilson, um ensaísta fantástico – é dele a mais singular narrativa sobre
o marxismo de que se tem notícia, vale dizer, “Rumo à Estação Finlândia” (1940)
–, fez-me lembrar um outro escritor e ensaísta, o inglês Aldous Huxlley, que,
num ensaio também inusitado – “Os sermões dos gatos” –, sustenta que
conheceríamos melhor o comportamento afetivo e sexual dos humanos se
observássemos com atenção o dos felinos.
J.A.R. – H.C.
Edmund Wilson
(1895-1972)
Sobre a Literatura
A literatura é apenas o resultado de nossas brutais colisões com a realidade, cujas repercussões, depois que nos recolhemos ao abrigo de nosso íntimo, tentamos explicar, justificar, harmonizar, colocar numa ordem lógica na corrente uniforme de um pensamento que se reestrutura depois de ser, por um momento, destroçado e dilacerado por elas – tomam-se meras cores e formas que podem tranquilizar e divertir a placidez de outras mentes ou que, no calor das circunstâncias ou atos, podem proporcionar aquele estado de distanciamento reflexivo – pois até mesmo o mais alto nível de excitação da visão imaginadora é um estado de reflexão e distanciamento. – A literatura é um longo processo de neutralização destes choques, abrandando o grosseiro e o bárbaro, a traição, o assassinato, o amor não correspondido (as anomalias, tanto quanto os crimes, têm de ser incluídas) – as irrupções constantes, impossíveis de prevenir, de nossa natureza bárbara e os acidentes dos desajustes internos de nossa situação enquanto parte do universo – na arte, lhes emprestamos a lógica de nossa razão e a harmonia de nossa imaginação – razão e imaginação, como leucócitos acumulando-se no local em que a Infecção, no organismo físico, aconteceu, acorrem imediatamente ao local da ruptura e, ingerindo os elementos estranhos, são expelidas sob a forma de arte – assim é que podemos rir ou chorar desses desastres, aliviando, num caso, nossa inteligência preocupada e, no outro, nossas emoções obstruídas (por meio do processo estético, seja lá o que ele for), e desse modo a ferida sara. – Assim, apenas as obras de arte – que, como os fagócitos, realmente ingeriram as bactérias nocivas, a causa da inflamação, da perturbação do equilíbrio do sistema – são importantes e valiosas; tem de haver um conflito com bactérias realmente nocivas, as inimigas do organismo que constantemente o atacam. – Em si, a obra de arte produzida, a qual, de certo modo, como o glóbulo branco, está morta, nunca pode, sozinha – ou seja, pelo simples ato de ser contemplada –, dar início à inflamação que evoca os leucócitos vivos. – É só quando reinfecciona o leitor – no caso da literatura, com uma forma mais branda da infecção – que a obra de arte pode gerar novas obras de arte; o intelecto intrigado e as emoções desconcertadas são causados pela obra de arte, e também, como a obra de arte é apenas humana, como o é o leucócito – ou seja, é um agente perfeito que tenta realizar um objetivo – ela exibe em sua própria forma e textura as anomalias, tragédias e vícios que são inerentes a todas as partes do organismo (o grande organismo whiteheadiano do qual as obras de arte não passam de partes, assim como os seres que as produzem). Se estas anomalias, etc., são sentidas a fundo – isto é, se o crítico, já infectado do sarampo, da difteria, da tuberculose ou da sífilis do desajustamento e do sofrimento, é posteriormente infectado por obras de arte (às quais, talvez ele prefira limitar-se, ao invés de correr os riscos da infecção da vida em si, mais séria, e, para ele, talvez fatal) – ele próprio pode vir a produzir novas obras de arte. – A analogia, naturalmente não se sustenta em todos os pontos, e não se deve tentar levá-la às raias do absurdo.
Referência:
WILSON, Edmund. 1926-1930: New York
(excerpt). Tradução de Paulo Henriques Britto. In: __________. Os anos 20: extraído dos cadernos e
diários. Organização e introdução de Leon Edel. Seleção de Michael Hall e Paulo
Sérgio Pinheiro. Tradução de Paulo Henriques Britto. São Paulo, SP: Companhia
das Letras, 1987. p. 286-287.
❁
Nenhum comentário:
Postar um comentário