Quem nunca viu o busto de bonecas negras colocadas à janela – as
denominadas “namoradeiras” –, como que para simular que há alguém em casa? Notei
a presença de muitas delas, por exemplo, em algumas cidades do interior de
Minas Gerais – Ouro Preto, em especial –, ali, onde os negros foram a mão de
obra preferencial que erigiu a maior parte das inúmeras igrejas existentes.
Segundo o poeta, as mulheres negras jamais tiveram “carta de alforria”,
pois, no mercado de trabalho pátrio, ser negra e mulher significa, quase que
necessariamente, manter-se no estrato social de maior carência, com salários
aviltados. Gerando filhos, então, mais sujeitas estão ao processo de
discriminação indireta que grassa em nossa hipócrita sociedade: “o pior dos mundos possíveis”.
J.A.R. – H.C.
Armando Freitas Filho
(n. 1940)
Propriedade
A boneca preta na
sacada
agraciada com o forro
falso
simula que tem alguém
em casa
onde foi sempre
ninguém.
Sem pernas, ela é
escrava
que não pode nem
voltar
para a senzala,
comprada
cortada ao meio para
ser
mais manipulável e
barata.
Trabalha dia e noite
presa na “eterna
vigilância”
atrás das grades
nas janelas, nas
cancelas
do partido dos
senhores
sem pregar o olho
sem direito sequer
ao sonho da alforria.
Namoradeira à Janela
Referência:
FREITAS FILHO, Armando. Propriedade.
In: ANDRADE, Mário de et al. 50 poemas
de revolta. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2017. p. 118-119.
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