Ao tentar interpretar
este ensaio alusivo ao que seja a arte poética para o autor português, ficou-me
a impressão de que Mourão vê a poesia como uma criação que se arrebata à
natureza pelo poeta, uma espécie de Narciso a refletir nos versos a sua própria
imagem, em relação incestuosa que traz a lume não só a expressividade do verbo,
como também algo mais do que a simples pureza do rosto refletida no espelho
d’água.
Veja-se que Mourão
recorre à companhia da lendária figura de Orfeu, o talentoso médico e também
poeta da mitologia grega, para dispô-lo na posse da mão esquerda dos que se
lançam à arte do poema, levando-os, por intermédio da outra mão, a revolver o
lodo presente no fundo poço – essa matéria orgânica que é a substância mesma do
poema.
J.A.R. – H.C.
David Mourão-Ferreira
(1927-1996)
Ars Poetica
Roubado à natureza
o dossier secreto
Patente a analogia
entre o fundo do poço
o rosto de
Narciso o sangue do incesto
há-de tudo
prender-se aereamente solto
Que o verbo seja um
espelho Ao mesmo tempo um véu
Que não
baste no lago a pureza do rosto
A lira é com certeza
a mão esquerda de Orfeu
Mas é a mão direita a
que revolve o lodo
Em: “Do Tempo ao
Coração: 1962-1966”
Orfeu tocando a sua lira
(Benedetto Gennari I: pintor italiano)
Referência:
MOURÃO-FERREIRA,
David. Ars poetica. In: __________. Obra poética. 2º Volume.
Lisboa, PT: Livraria Bertrand, jan. 1980. p. 31.
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