Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 24 de junho de 2018

Lívia Natália - Freudiana ‎

A poetisa baiana teoriza a sua relação com os homens, afirmando que, por trás de cada amante, há o seu próprio pai, que talvez seja ou tenha sido um pescador, tantas as referências a elementos marinhos em seu poema, dos peixes à maresia, de embarcações e seus timoneiros a induvidosos naufrágios.

 

Reconhece-se Natália na figura de sereia, uma kindaia, espécie de divindade das águas angolana, assim como Iemanjá, ou, ainda, numa ostra silenciosa que se “desmora” em silêncio – e aqui se emprega um vocábulo que requer certa petulância hermenêutica, sobre a qual, a seguir, me detenho.

 

A palavra não se encontra nos dicionários formais e mais parece uma junção de “des + morar”, o que resultaria na acepção de uma ostra que avança para escapar de sua concha calcificada muito demoradamente. E desse modo chegamos à associação metafórica da própria poetisa: translúcida como as águas, em cujo meio os peixes que lhe cortejam vêm absorver o silêncio das profundezas abissais.

 

J.A.R. – H.C.

 

Lívia Natália

(n. 1979)

 

Freudiana

 

No mais fundo dos homens que amo

há meu pai, com sua carne de maresias.

Ele se desenha na pele dos meus homens

como o mar inscreve, no peixe, as escamas.

 

(Todo corpo em que derivo absorta

tem algo de sua voz pedregosa.)

 

Nas peles negras em que me banho

flutua sua existência de maré:

prenhe de naufrágios.

 

Aos pés destes timoneiros delicados

que pensam singrar minhas águas

sou a kianda-sereia,

um coral espelhado,

sou a ostra que se desmora em silêncio.

 

Sou a água eternamente translúcida.

Precipício denso de onde estes peixes bebem

– apenas –

um silêncio delicado.

 

O Momento Sublime

(Salvador Dalí: pintor espanhol)

 

Referência:

 

NATÁLIA, Lívia. Freudiana. In: CALCANHOTO, Adriana (Org.). É agora como nunca: antologia incompleta da poesia contemporânea brasileira. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2017. p. 92.

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