A poetisa baiana
teoriza a sua relação com os homens, afirmando que, por trás de cada amante, há
o seu próprio pai, que talvez seja ou tenha sido um pescador, tantas as
referências a elementos marinhos em seu poema, dos peixes à maresia, de
embarcações e seus timoneiros a induvidosos naufrágios.
Reconhece-se Natália
na figura de sereia, uma kindaia, espécie de divindade das águas angolana,
assim como Iemanjá, ou, ainda, numa ostra silenciosa que se “desmora” em
silêncio – e aqui se emprega um vocábulo que requer certa petulância
hermenêutica, sobre a qual, a seguir, me detenho.
A palavra não se
encontra nos dicionários formais e mais parece uma junção de “des + morar”, o
que resultaria na acepção de uma ostra que avança para escapar de sua concha
calcificada muito demoradamente. E desse modo chegamos à associação metafórica
da própria poetisa: translúcida como as águas, em cujo meio os peixes que lhe
cortejam vêm absorver o silêncio das profundezas abissais.
J.A.R. – H.C.
Lívia Natália
(n. 1979)
Freudiana
No mais fundo dos homens que amo
há meu pai, com sua carne de maresias.
Ele se desenha na pele dos meus homens
como o mar inscreve, no peixe, as escamas.
(Todo corpo em que derivo absorta
tem algo de sua voz pedregosa.)
Nas peles negras em que me banho
flutua sua existência de maré:
prenhe de naufrágios.
Aos pés destes timoneiros delicados
que pensam singrar minhas águas
sou a kianda-sereia,
um coral espelhado,
sou a ostra que se desmora em silêncio.
Sou a água eternamente translúcida.
Precipício denso de onde estes peixes bebem
– apenas –
um silêncio delicado.
O Momento Sublime
(Salvador Dalí: pintor espanhol)
Referência:
NATÁLIA, Lívia.
Freudiana. In: CALCANHOTO, Adriana (Org.). É agora como nunca: antologia incompleta da poesia
contemporânea brasileira. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras,
2017. p. 92.
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