Fonseca, poeta português, viu suceder aos melhores espíritos de sua
geração circunstâncias similares às que estiveram expostos os componentes da
denominada “Geração Beat” norte-americana, entre eles, Allen Ginsberg, de quem
replica o mote, extraído dos primeiros versos de seu poema “Howl” (“Uivo”).
Todos eles vivendo de forma não convencional, quase ao nível da
naturalidade, comportando-se em oposição ou em inconformidade aos valores
estabelecidos, lançando mão de drogas para experimentar “outras dimensões” do
ser e do estar: uma revolução para os padrões ainda conservadores da época...
J.A.R. – H.C.
António Barahona da Fonseca
(n. 1939)
Homenagem a Allen Ginsberg
“Vi os melhores espíritos da minha
geração destruídos pela
loucura, morrendo à fome histéricos nus”
uiva Allen Ginsberg,
poeta americano de S. Francisco,
com os cabelos em
desalinho
Eu vi a mesma coisa
por cá, Allen,
e penso que acontece
assim em toda a parte
Era um grupo, não propriamente
um grupo, mas
um grupo que se
sentava
sempre de costas, ou
de lado, sob a chuva
torrencial que
algumas palavras provocavam ao abrir-se
Bebia-se muito
bagaço, cafés uma vez por outra,
o sangue podia
beber-se à vontade:
bastava cortar as
veias às mulheres que se aproximavam
Uns escreviam livros
que rasgavam
devia ser numa praia
para a maré levar as folhas
e de noite, sem lua,
bem no alto do rochedo
Outros publicavam nos
jornais, raramente
Havia, claro, o papa,
os papas, já os escritores
com oficina montada
para as bandas da Sé Velha
E os que não
morreram, não enlouqueceram ou não se
suicidaram
e os que não traíram
esses vão vivendo
como podem
e são agora papas
cardeais arcebispos
Alguns forçados a
voto de pobreza
arrastando-se pela
Europa como o meu amigo
Manuel de Castro
um dos melhores espíritos da minha
geração, Allen Ginsberg,
que embora não
acredites, ainda resiste,
árabe na linha do seu
destino infalível
acendedor de palavras
visionário de
técnicas amorosas, combativas, mágicas
Mas como ia dizendo,
Allen, era um grupo, não propriamente
mas um grupo
cujos elementos
talvez se odiassem
ou então era amor,
sobretudo raiva
contra a cidade senil
Ninguém trabalhava
e os poucos que trabalhavam despedidos no dia seguinte
ameaçavam
(murmurava-se) as famílias, as instituições...
Eles
uma família azul que
fumava cigarros baratos
que se embebedava com
muitas prostitutas
e da qual, desregradamente,
certos membros
praticavam a homossexualidade
por esteticismo
Era um grupo, não propriamente,
mas
um grupo, Allen
Ginsberg,
de anjos caídos,
trêmulos, atrás duma nota de vinte
para jantar
Do livro “Impressões digitais” (1968)
Viagem até a praia
(Cody Seekins: pintor
norte-americano)
Referência:
FONSECA, António Barahona da. Homenagem
a Allen Ginsberg. In: MENÉRES, Maria Alberta; MELO E CASTRO, E. M. de (Orgs.). Antologia da novíssima poesia portuguesa.
3. ed. 2. vol. Lisboa, PT: Moraes Editores, 1971. p. 641-642. (‘Círculo de Poesia’;
v. 46)
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