A poetisa confronta a temporalidade do ser com a maior permanência do
poema, ou seja, espera que o seu trabalho seja capaz de se sustentar ante o fluxo
corrosivo do tempo, fazendo-o passar pelas mãos de quem o lê, indo dar em
praias onde poderá quebrar as suas ondas.
E mais: aspira pela identificação do leitor com as ideias nele expressas, a
ponto de poder confundir o seu próprio ser – imerso na solidão voraz delimitada
por quatro paredes que se supõem conformar o seu espaço privativo – com o poema
mesmo, sujeito ao trânsito dos anos.
J.A.R. – H.C.
Sophia de Mello Breyner Andresen
(1919-2004)
O Poema
O poema me levará no
tempo
Quando eu já não for
eu
E passarei sozinha
Entre as mãos de quem
lê
O poema alguém o dirá
Às searas
Sua passagem se
confundirá
Com o rumor do mar
com o passar do vento
O poema habitará
O espaço mais
concreto e mais atento
No ar claro nas
tardes transparentes
Suas sílabas redondas
(Ó antigas ó longas
Eternas tardes lisas)
Mesmo que eu morra o
poema encontrará
Uma praia onde
quebrar as suas ondas
E entre quatro
paredes densas
De funda e devorada
solidão
Alguém seu próprio
ser confundirá
Com o poema no tempo
Em: “Livro sexto” (1962)
No litoral de Capri
(Andreas Achenbach:
pintor alemão)
Referência:
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. O
poema. In: __________. Obra poética II.
Lisboa, PT: Editorial Caminho, 1991. p. 120.
❁
Nenhum comentário:
Postar um comentário