A serpente, símbolo que, no Gênesis, representa a tentação pelo
conhecimento, aparece enrolada na árvore da ciência, toda autoconsciência e
imodéstia, a enunciar o seu prodigioso discurso, que nesta ode se declama por
meio do eu lírico – ora ora, quem melhor para fazê-lo?!
Alguém poderá arguir que a serpente tem poderes para levar o ser
humano a perder-se – Mefistófeles é uma sua variante, está claro! –, mas ela bem
pode traduzir, também, os distintos aspectos da natureza humana – afinal,
quantas vezes ela troca a pele ao longo da vida?!...
J.A.R. – H.C.
Paul Valéry
(1871-1945)
Ébauche d’un Serpent
(...)
Suave est ce temps de
plaisance!
Tremblez, mortels! Je
suis bien fort
Quand jamais à ma
suffisance,
Je bâille à briser le
ressort!
La spendeur de l’azur
aiguise
Cette guivre qui me
déguise
D’animale simplicité;
Venez à moi, race
étourdie!
Je suis debout et
dégourdie,
Pareille à la
nécessité!
Soleil, soleil!…
Faute éclatante!
Toi qui masques la
mort, Soleil,
Sous l’azur et l’or
d’une tente
Où les fleurs
tiennent leur conseil;
Par d’impénétrables
délices,
Toi, le plus fier de
mes complices,
Et de mes pièges le
plus haut,
Tu gardes le coeur de
connaître
Que l’univers n’est
qu’un défaut
Dans la pureté du
Non-être!
Grand Soleil, qui
sonnes l’éveil
À l’être, et de feux
l’accompagnes,
Toi qui l’enfermes
d’un sommeil
Trompeusement peint
de campagnes,
Fauteur des fantômes
joyeux
Qui rendent sujette
des yeux
La présence obscure
de l’âme,
Toujours le mensonge
m’a plu
Que tu répands sur
l’absolu,
Ô roi des ombres fait
de flamme!
Verse-moi ta brute
chaleur,
Où vient ma paresse
glacée
Rêvaser de quelque
malheur
Selon ma nature
enlacée…
Ce lieu charmant qui
vit la chair
Choir et se joindre
m’est très cher!
Ma fureur, ici, se
fait mûre;
Je la conseille et la
recuis,
Je m’écoute, et dans
mes circuits,
Ma méditation
murmure…
(...)
Serpente
(Veronica Minozzi:
pintora italiana)
Esboço de uma Serpente
(...)
Suave é o tempo
complacente!
Tremei, mortais! Fico
mais forte
Se, nunca
suficientemente,
Bocejo até beirar a
morte!
O esplendor do azul
aguça
Esta hidra que me
encapuça
De uma animal
simplicidade.
Vinde a mim, ó raça
inexperta!
Estou de pé e já
desperta,
Semelhante à necessidade!
Sol, sol!... Ilusório
arquiteto!
Tu, Sol, que mascaras
a morte,
Sob o azul e o ouro
de um teto
Onde as flores têm
sua corte;
No arco-íris das tuas
cores,
Tu, traidor dos
traidores,
Dos meus laços o mais
perfeito,
Poupas a pena de
saber
Que o mundo é apenas
um defeito
Ante a pureza do Não-ser!
Grande Sol, tu que a
luz descerras
Ao ser, de fogos o
iluminas,
Tu, que no sono ameno
o encerras,
A falsa tinta das
campinas,
Fautor de fantasmas fugazes
Que prendem aos olhos
falazes
A presença obscura da
alma,
A mentira é minha
parceira,
Que espalhas pela
terra inteira,
Rei das sombras,
feito de flama!
Versa em mim teu fogo
fictício,
Onde o meu tédio
regelado
Elucubra algum
malefício
Segundo o meu ser
enlaçado...
Esta área em que a
carne clara-
Mente caiu me é muito
cara!
Minha fúria, aqui,
está madura;
Afago e afogo os seus
intuitos:
Eu me escuto e nos
meus circuitos
Minha meditação
murmura...
(...)
Referência:
VALÉRY, Paul. Ébauche d’un serpent
(extrait) / Esboço de uma serpente (excerto). Tradução de Augusto de Campos. In: CAMPOS, Augusto de (Organização
e tradução). Paul Valéry: a serpente
e o pensar. Edição bilíngue. São Paulo, SP: Brasiliense, 1984. Em francês: p. 28
e 30; em português: p. 29 e 31.
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